Dois corpos podem sim ocupar o mesmo espaço e comprovei esse argumento de uma forma bem imprópria. Mas, antes de chegar nessa parte, preciso dar um contexto levemente desnecessário a respeito de como cheguei ao ponto de poder contestar esse princípio científico. Só que eu precisei mudar meus hábitos autodestrutivos primeiramente.
Meu nome é Leo Valdez e eu sempre fui meio nerd. Gosto de aprender coisas e testar na prática muitas delas, o que me leva a fraturar alguns ossos, distender alguns membros ou me meter em encrenca. Minha irmã, Nyssa, dizia para eu parar de fazer experimentos, principalmente se eu fosse usar a mim como cobaia, porque isso a preocupava muito.
Nossa mãe morreu há bastante tempo, então moramos com nossos avós. Meu irmão mais velho, Charles estava prestes a ir pra faculdade e eu no último ano do fundamental. Nyssa estava no segundo ano do ensino médio e tinha que se preparar para segurar as pontas depois que Char desse o próximo passo em sua vida.
Passei a me reprimir mais para ajudá-la e para tornar suas responsabilidades mais amenas. Meu pai cuida de uma oficina e precisava de uma ajuda qualificada, por isso me ofereci. Um dos meus passa-tempos favoritos era mecânica. Minha mãe ensinava um monte de coisas sobre para mim e meus irmãos quando era viva, então eu me considerava tão capaz quanto qualquer profissional na área.
Depois de testar meus conhecimentos, fui "contratado". Trabalhei como um jovem aprendiz e ganhei alguns reais a mais do que um. Charles foi pra universidade e Nyssa se afogou com matérias escolares e com as necessidades de nossos avós. Eles deveriam cuidar de nós e não nos sobrecarregar dessa forma, mas eles não tem controle sobre isso. O peso da idade chega para todos e chegou para eles assim como chegou para o avô de Piper, minha melhor amiga.
Trabalhei depois da escola por muito tempo, dando todo o dinheiro ganho para que Nyssa administrasse conforme as demandas em casa. Foquei em meus estudos como se tudo dependesse disso e busquei aprender tanto quanto meu tempo limitado me permitia.
As poucas amizades que me permiti ter foram Jason e Piper. Graças a eles, tive Hazel, Annabeth e Nico como amigos também, mas não tão próximos. Hazel Levesque insistia em manter-se perto, por mais que eu não pudesse lhe dar a atenção merecida.
Nyssa se formou no ensino médio e abriu mão da possibilidade de cursar mecânica automotiva. Char conseguiu um emprego e mandava para nós uma quantia pequena, apenas para nós ajudar. Cheguei ao segundo ano do ensino médio com notas perfeitas, mas uma carga horária extremamente pesada. Tudo exigia muito de mim.
Aí Frank apareceu na minha vida conturbada. Me apaixonei por ele mais do que devia. Eu não tinha tempo pra me apaixonar e nem pra me distrair com meus sentimentos. Uma paixão era irremediavelmente inconveniente pra mim naquele momento. A intensidade do amor me inebriava e roubava-me a atenção de outras coisas importantes que eu tinha que fazer.
Passei a odiar a mim mesmo por sentir o que sentia. Eu não tinha tempo nem pra ter mais de três amigos próximos, quanto mais pra ficar trocando saliva e fluídos com outra pessoa, independentemente do gênero dela. Além de que meus avós são católicos, assim como os pais de Nico, que o expulsaram de casa por ser gay.
Nyssa não me repudiaria, eu sei. Mas eu tinha medo. Medo do que pensariam de mim, medo de perder o pouco que tinha, medo dos meus anseios, medo de mim mesmo. Romance sempre esteve em último lugar da minha lista de prioridades e eu mal pensava sobre isso, mas, por causa do Zhang, a ideia de viver um amor como o dos livros de Piper me vinha a cabeça mil vezes mais do que eu imaginava que iria ocorrer quando eu tivesse tempo pra isso.
Eu estava secretamente apavorado e meu emocional abalado se refletia no modo como eu tratava o sino-canadense: com hostilidade. Eu queria ser hostil comigo mesmo, mas não conseguia pela falta de tempo e as responsabilidades que me afogavam até o pescoço, então a solução foi tratá-lo mal e afastá-lo da maneira mais cruel, assim como eu queria fazer com meus sentimentos inconvenientes.
Mas, claro, minhas atitudes grosseiras só causaram no Frank curiosidade a respeito do motivo de eu falar e fazer aquelas coisas. Sempre mantive minha carranca, respondendo com um sarcasmo sádico a todas as perguntas sérias que ele me fazia. Jason me olhava questionador, buscando no fundo dos meus olhos as respostas que eu não queria dar, mas que estavam na ponta da minha língua afiada. Piper me repreendia, claro. Nico parecia saber, mas apenas meneava com a cabeça toda vez que eu e o Zhang começávamos a discutir.
Tentei fazer com que o descendente de chineses me odiasse, mas foi em vão. A cada comentário desrespeitoso, mais dedicado ele parecia em chegar na conclusão da grande questão que ele sempre erguia toda vez que brigávamos. Ser um baita babaca e um filho da puta de carteirinha com ele não estava funcionando, então tentei o plano B: Fugir.
Se ele estava perto, eu me afastava. Se ele falava, eu fingia que não ouvia e saia discretamente. Se ele se dirigia a mim, fingia que não tinha escutado com mil e uma desculpas como justificativa. Se ele me olhava, eu olhava para qualquer outra coisa ou pessoa para evitar encará-lo.
Minha falta de interesse em ser próximo dele deveria tê-lo feito se afastar. Mas não... Frank era um puta persistente e eu ficava cada vez mais irritado ao notar que ele não ia ceder. Eu estava frustrado por não ter conseguido cumprir meu principal objetivo, que era infernizá-lo tanto que ele não aguentaria conviver comigo nem por um segundo a mais.
Um dia, ele veio até mim quando sabia que eu não tinha como escapar: nenhum amigo por perto, ninguém ao redor pra que eu fingisse que tinha me distraído, nenhuma desculpa para sair de fininho, próximos demais pra fingir não ter escutado. Mas eu corri. Corri mesmo. E foi horrível. Meu corpinho sedentário clamou por misericórdia depois de uns cinco metros.
Foi bem humilhante ficar com a respiração acelerada com poucos passos. Mas me forcei a correr como nunca tinha corrido na vida. Corri o mais rápido que pude. Forcei minhas pernas para frente, um passo após o outro. Minhas pernas doíam e minhas juntas ardiam, mas forcei meu corpo a continuar correndo. Meus pulmões imploravam uma pausa para respirar, mas não dei a eles o que tanto me pediam.
No desespero por respirar, tomei uma decisão burra e entrei em uma sala qualquer, fechando a porta logo atrás de mim. Encostei-me em uma parede e arfei com força. Eu estava atordoado pela falta de ar, desesperado com a sensação de asfixia que me sufocava tanto quanto as responsabilidades que me amarram em uma rotina opressiva.
Frank entrou não muito depois, fechando a porta em seguida. Estava determinado como eu nunca o vira antes. Poderia quebrar concreto nas mãos se sua determinação pudesse ser transformada em força física. Havia uma certa impaciência nos seus olhos.
Recuperei o fôlego em tragadas enormes de ar, com dificuldade por causa do desespero anterior de morrer. Meus pulmões ardiam e meus músculos latejavam de dor. Todo o conjunto dessas sensações era atordoante. Minha visão estava embaçada por lágrimas suaves do medo que eu tive da asfixia me matar. Eu só fui perceber o Zhang se aproximando bem devagar depois de alguns minutos, que eu não sei quantos porque estava atordoado.
Quando eu parecia melhor, o sino-canadense apoiou a mão na parede perto da minha cabeça. As duas mãos, na verdade. Seu corpo estava muito próximo do meu, como se usasse a si mesmo como uma barreira para que eu não escapasse.
Naquele momento, eu percebi a grandiosa merda que tinha feito. Eu estava em uma sala fechada, num horário que poucas pessoas passam no corredor, a pouquíssimos centímetros do rosto da pessoa por quem eu sou apaixonado, mas quero a todo custo fugir. E o moreno nunca me pareceu tão imponente e sexy em toda a existência.
Eu queria me dissolver em um líquido viscoso dos meus átomos e evaporar no chão. Queria deixar de viver na mesma proporção que queria beijá-lo.
Toda vez que Piper me falava sobre sexo e o amor por trás do ato, eu revirava os olhos e rebatia que o amor era uma reação química do nosso cérebro necessária para nossa evolução. E ali estava eu, gostando de alguém com quem nunca teria tempo de me relacionar amorosamente.
A situação será cômica daqui uns anos, pensei uma vez. Em vinte anos, direi a Frank que já quis dar pra ele, que era apaixonado e tals e nós iremos rir disso.
Eu não sei quem foi que elaborou toda essa merda, mas esse negócio de rir dessa situação parece cada vez mais distante e errôneo a medida que os dias viram noite e semanas viram meses. Eu quero pular vários anos da minha vida para que eu não tenha que enfrentar a parte ruim de esperar o sofrimento acabar.
Porra, isso não é justo!
Eu trabalho pra ajudar minha irmã, estudo pra caralho pra orgulhar minha família, dou o máximo de mim para não ser ausente e sair com meus amigos, ajudo com as coisas de casa, sou o fodão da turma em questão de notas e desempenho. Mas NUNCA parece ser suficiente. E eu não tenho nem tempo de me permitir sentir as coisas que um apaixonado sente. Eu não tenho tempo de manter um relacionamento e de cultivar hobbies próprios. Essa é a porra da minha vida e eu não tenho nada realmente meu além de amigos que eu nem tenho certeza se continuariam meus amigos depois da escola.
Isso não é nem um pouco justo!
Eu estudei tanto a semana toda. Tentei tanto esquecer e focar. Isso não é justo. Nem com Frank e nem comigo. Ele não merece ser tratado como bosta pra depois descobrir que eu gostava dele e tentava afastá-lo porque achava que assim seria mais fácil.
一 Desculpa. 一 Eu disse num sussurro.
Ele parecia surpreso.
一 O quê?
一 Eu fodi com tudo. 一 Minha voz estava embargada e foi quando percebi que estava chorando. 一 Eu fiquei te tratando mal pra caralho, mas isso não vai resolver o meu problema comigo mesmo. Claro, não resolveu. Mas o que diabos eu poderia fazer no fim das contas? Eu não posso gostar de você. Nico foi expulso por gostar do Will e eu não posso... Pelos deuses, eu não tenho nem tempo pra gostar de você. E eu odeio a porra do meu cérebro primitivo idiota.
一 Opa, volta um pouco. 一 Interrompeu ele. 一 O quê?
一 Eu...
Meu rosto ficou vermelho e minha língua travou. Respirei fundo, tentando organizar meus pensamentos em linhas de fala coerentes.
一 Eu meio que sou apaixonado por você.
Ele franziu as sobrancelhas.
一 Desde quando?
一 Bem... desde todo o tempo que eu venho te xingando e destratando.
一 O quê? Por quê?
一 Eu imaginei que se você se sentisse diminuído por minha causa, se afastaria e minha paixão platônica inconveniente passaria. Foi um mecanismo de defesa.
一 Que mecanismo de defesa merda, ein.
一 Para! Eu tô tentando, ok?
一 Tentando o quê?
一 Me abrir com você. Não esconder nada. Dizer os motivos que me levaram a fazer o que fiz.
Frank parou de franzir as sobrancelhas e me olhou com um pouco menos de seriedade.
一 Eu gosto de você, mas minha rotina é muito corrida e muitas vezes eu fico cansado demais pra lidar com prioridades menos importantes. Quando eu descobri o que sentia, me senti errado e pensei que seria um desastre se isso viesse a tona.
Ele não me interrompeu, mas eu o percebi me dando mais espaço.
一 Esconder parecia a coisa mais lógica. Eu não me sentia bem comigo mesmo e com esse sentimento. Pensei que se afastasse a causa e te fizesse me odiar, seria mais fácil te esquecer e seguir em frente. É mais fácil superar alguém que te odeia do que uma pessoa que te vê com bons olhos. Mas as coisas não saíram tão bem quanto eu arquitetara.
一 Sou um curioso de carteirinha, Leo. Quis saber por quê você me tratava assim.
一 Agora está descobrindo. Sua persistência me irritava e me intrigava. Eu não queria um joguinho de ódio e provocações com a pessoa por quem eu ainda sou apaixonado. Eu queria que isso se estendesse por mais tempo do que eu podia gastar.
一 Você ainda é apaixonado por mim?
一 Foi nisso que focou mesmo com tudo o que eu disse?
O Zhang coçou a nuca.
一 Ainda sou. 一 Respondi. 一 Mas a Hazel existe.
Ele me olhou meio confuso.
一 Ela é bonita, inteligente, atenciosa e disponível. São coisas que eu não posso te oferecer nem aqui e nem em Marte, Frank.
Observei-o franzir os lábios.
一 Mas e se eu preferir você?
Eu dei risada.
一 Um garoto magrelo com uma rotina completamente corrida, problemas psicológicos e avós homofóbicos? É isso que você prefere?
一 Talvez...
Eu estava desacreditado. Eu nunca fui o mais bonito, o mais carismático, o mais inteligente (Apesar de todos os meus esforços, decorar não é a mesma coisa que saber), o mais beijável, o mais escolhido, o mais engraçado. Eu sempre fui uma bagunça ambulante de sentimentos, tentando equilibrar vários pratos de uma vez, todos eles representando minhas responsabilidades.
Jamais esperaria que, entre eu e uma opção tão boa quanto Hazel, eu fosse ser escolhido por alguém, quanto mais por Frank. Ele se aproximou de mim e me abraçou pela cintura. O toque era quente e acolhedor. Me fazia sentir como se eu merecesse, mas uma vozinha hostil no fundo da minha mente dizia o contrário.
一 Eu não entendo. Por quê? Por que logo eu? Eu... não tenho nada.
一 Porque vale a pena. A culpa não é sua. Jason me contou sobre sua mãe. Ela está morta, mas tudo o que ela deixou pra trás não precisa cair sobre os seus ombros e o de seus irmãos.
Lágrimas me vieram aos olhos.
一 Eu... preciso. Não posso deixar Nyssa lidar com isso sozinha.
一 A única coisa que você precisa é falar com ela.
A ideia não parecia certa. Eu não podia.
一 Você não entende. Eu não posso decepcioná-la. Ela já desistiu da faculdade dos sonhos por minha causa. Eu... preciso...
一 Isso não é sua culpa, Leo.
一 Eu não posso dar mais trabalho a ela. Ela... Nós já sofremos tanto. Eu não posso ser motivo de mais desgosto a ela.
一 Seus sentimentos não são trabalho. Você é um ser humano e todo esse peso tá te matando.
一 Eu não posso, Frank. Eu não posso. Eu. Não. Posso.
Comecei a soluçar. O choro vinha de forma incontrolável.
一 Ela sabe o que quer da vida. Quando seus avós morrerem, o que vai acontecer porque nossa vida é findável, ela sabe pra onde vai, mas e você?
一 Eu...
一 Você tem sonhos, sentimentos, traumas. Você tenta agradá-la para livrá-la de saber que você também existe da mesma forma que ela. Você sente, Leo. Reprimir, esconder, diminuir. Nada disso vai te salvar de quem você é.
一 Ela escolheu cuidar de mim e dos meus avós. Trocou o sonho dela...
一 Exatamente: Ela escolheu! Ela escolheu adiar, mas não desistiu. Ela escolheu adiar pra que você pudesse ter o seu.
Me permiti chorar um pouco. Senti-o fazer um carinho suave no meu cabelo.
一 Tem tanta gente que te ama e faria de tudo por você. Como você não vê?
Havia algo dentro de mim que eu não sabia que existia. Um nó no meu peito que estava se desfazendo aos poucos. Eu me sentia acolhido como nunca me sentira antes. Eu morria de saudades da minha mãe e odiava meu pai por ter deixado-a sozinha com três filhos. Meus avós não tinham culpa de nada, mas eu não gostava que eles fossem tão exigentes com Nyssa.
Pela primeira vez, eu não me sentia uma farsa. Se o caminho para melhorar meu emocional e entender a mim mesmo como um indivíduo sentimental fosse ser mais verdadeiro comigo e com os outros, me impondo mais e sendo mais eu, eu traçaria-o. Sem hesitar.
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A conversa com Frank me fez abrir os olhos pra muitas coisas. Uma das coisas mais importantes foi a relação tóxica que eu mantenho comigo mesmo. A autocobrança e sensação de insuficiência me faziam mal num nível que eu jamais imaginaria. Com alguns cuidados e um olhar atencioso do Zhang, fui me consertando e me policiando.
O moreno nunca falava algo de ruim pra mim e se dispunha o máximo possível a me ajudar, o que contribuiu para que nossa relação evoluísse. Ele sabia que eu gosto dele e disse que me escolhia, mas não começamos a namorar. Ele me disse que me auxiliaria com o que eu precisasse para me tratar de traumas do passado, até que eu me sentisse confiante o suficiente para um relacionamento amoroso. Disse-me que esperar não era um problema pra ele.
E eu sabia que estava tudo bem. Eu realmente não me sentia pronto pra nada, então a compreensão dele sobre isso me aliviava muito. Eu tinha tempo para me entender como pessoa e quebrar minhas barreiras emocionais com calma.
Passou-se alguns meses, talvez sete ou oito, e eu já não me preocupava tanto em ser perfeito nas matérias da escola. Eu tinha tirado um oito e não fora o fim do mundo. Nessa ocasião, eu pus o meu boletim sobre a mesa na hora do jantar. Nyssa pegou, leu e me perguntou se eu estava bem, se eu precisava de ajuda pra estudar ou de algum consolo por causa da nota fora do padrão. Não podia culpá-la. Eu sempre fui muito sistemático.
一 Estou ótimo. 一 Sorri. E estava mesmo.
一 Eu só... estou surpresa. Tem certeza de que tá tudo bem?
Assenti. Minha boca estava cheia de pozole, como o que nossa mãe fazia quando éramos mais novos e ficávamos frustrados quando chovia porque não podíamos brincar de perseguir gatos na rua. Era divertido, mas a chuva estragava essa brincadeira, então ela fazia para nos distrair.
一 Tudo excelentemente bem.
Ela franziu o cenho.
一 Acho que "excelentemente" existe, Leo.
一 Tenho quase certeza que sim. Caso não, criei uma nova palavra.
Eu não estava triste por causa da nota, de verdade. Nada daquilo me trazia nem um pingo de frustração. Se fosse há um tempo atrás, eu me martirizaria eternamente, me questionaria onde tinha errado, quanto tempo mais eu teria que estudar incansavelmente pra recuperar a excelência anterior e quantos compromissos com meus amigos eu precisaria desmarcar pra ter tempo de me torturar durante horas por esse "erro". Mas eu tinha evoluído e a falta de alguns pontos (pouquíssimos pontos a menos, por sinal) me trazia até um alívio porque me provava que eu ainda era capaz de errar.
Poucos dias depois, estávamos eu e Nyssa na mesa de jantar fazendo alguns cálculos e vendo como seriam as finanças do mês. Haviam alguns ingredientes guardados porque teria o aniversário dela e ao menos um bolo nós faríamos para comemorar.
Nosso avô a chamou da sala e pediu que fizesse um café com leite para ele. Na TV, passava uma novela bíblica. O olhar dela ficou um pouco aflito porque o leite que tinha era separado para o bolo, mas colocou um pouco no café, cruzando os dedos para que ele não notasse. O fato é que Nyssa sempre adorou doces e não tinha tido esse luxo em seus últimos dois aniversários. O bolo era importante pra ela.
一 Nyssa.
Ela ficou apreensiva.
一 Sim, vovô?
一 Está faltando leite. Você pode colocar mais pra mim, por favor?
Observei-a comprimir os lábios. Ela fechou os olhos por um momento, para afastar as leves lágrimas que surgiam. A receita do bolo era de nossa mãe e dizia claramente que tinha que ser uma quantidade específica para cada coisa para que ficasse bom de verdade. Era importante.
一 Não. 一 Respondi por ela. Minha voz soava firme, mas não rude. 一 Ela não pode. O leite que tem é para o bolo dela. O aniversário de Nys é em poucas semanas e se ela colocar mais leite no seu café, não terá o suficiente para o bolo.
Nyssa parecia chocada e pálida, como se eu tivesse acabado de desrespeitar uma regra que faria com que nós fôssemos expulsos da existência.
一 Mas... 一 Meu avô não parecia saber lidar com minha argumentação. 一 É só mais um pouco.
一 Que pode comprometer o dia dela. 一 Retruquei. 一 É só mais um pouco. Não vai fazer falta para o senhor.
O choque dele foi substituída por uma breve raiva.
一 Ora, seu...
Minha avó, que observava a cena, colocou a mão sobre o pulso dele, apaziguou-o com algumas palavras em nossa língua nativa e o convenceu a continuar assistindo a novela. Dei um sorriso para Nyssa e voltamos para a cozinha. Lavamos alguns pratos que estavam na pia, secamos e guardamos enquanto conversávamos sobre nada em particular.
Quando deu meu horário de dormir, abracei-a e disse que aniversário dela seria incrível.
一 Sabe, você está diferente. Faz algum tempo que percebi que você emana uma energia menos ansiosa e sobrecarregada. E eu amo isso porque significa que você está bem. Desculpe-me por não ter notado que estava sofrendo com algo. 一 Ela acariciou minhas bochechas. 一 E eu sei que não sou a melhor irmã do mundo o tempo todo, mas eu tento.
一 Eu sei que você tenta. As vezes, tenta até demais.
一 Eu sei. 一 Ela riu. 一 Preciso aprender a ser mais gentil com minhas falhas.
一 Passei todos os últimos sete meses aprendendo isso e a me entender como uma pessoa que tem sentimentos, limites emocionais, sonhos, vontades. 一 Fiz uma careta. 一 E eu sou um porre. Mas aprendi que eu posso cometer erros. Não é o fim do mundo. Aprendi que eu sinto e sinto pra caralho.
Nyssa pôs um dedo sobre os lábios, me repreendendo pelo palavrão, mas sorriu.
一 Só não aprendeu a ter controle, não é?
Revirei os olhos.
一 Quase isso.
Ela me abraçou forte, como se eu fosse um dos seus bens mais preciosos no mundo.
一 Eu tô tão feliz por você, Leo. Tão orgulhosa.
Abracei-a de volta, me sentindo o garoto mais sortudo do mundo. Muitas vezes, fazemos mal aos outros sem perceber que aquilo os afetou. Aprendi a perdoar os outros e a mim mesmo, tomando cuidado (mas não excessivo) com minhas ações, sempre tentando entender qual mensagem eu queria passar às pessoas.
一 Vou me deitar. Preciso dormir.
一 Ok. 一 Concordou ela. 一 Boa noite. Sonhe com os tacos da mamãe.
一 Vou comê-los quando acordar?
Seu olhar era divertido, mas também tinha o brilho de quem planejava algo.
一 Talvez...
Sorri e me virei pra sair. Quando estava no batente da porta, senti um peso no peito. Eu deveria contar pra ela, pensei. Sobre... tudo? Não. Não posso agora. O sono não me permitirá falar mais que um monólogo e meio aos tropeços.
Olhei para trás por cima do ombro.
一 Eu preciso te contar uma coisa. 一 Anunciei, meio receoso. 一 Eu gosto do Frank.
Ela piscou, tentando processar a informação.
一 Aquele asiático bonitinho? Que ganhou aquele concurso de soletração?
Assenti.
Ela sorriu.
一 Estou definitivamente hiper feliz por você. 一 Ela reprimiu um gritinho de alegria. 一 Obrigada por dividir isso comigo. Nós precisamos conversar, tá?
Sorri, me sentindo mais leve e aliviado enquanto ia para o meu quarto.
🔥 ✲ 🪛 ✲ 🪛 ✲ 🔥
Acho que um mês se passou depois que eu me assumi para Nyssa até que eu mandei mensagem para Frank durante o fim da tarde de um fim de semana. Era sábado e eu já tinha (re)assistido minha série favorita, ou pelo menos a primeira temporada porque essa porra tem episódio que só a porra.
Eu tinha me cansado de continuar olhando pra tela do meu celular enquanto uns adolescentes foda ficava lutando contra alienígenas e o casal gay principal (não-canônico, mas poderia ser) ficava se xingando pra disfarçar o amor que sentiam, então eu mandei mensagem chamando-o para vir a minha casa.
Avisei minha irmã de que tinha feito isso e ela disse-me que eu não precisava me incomodar com falta de privacidade se ele realmente viesse. Frank realmente veio. Eu fiquei surpreso. A porra de um sábado, quase seis horas da noite e ele tinha aparecido. Me perguntei se ele não tinha nada mais o que fazer? Se não queria ficar com a avó, ouvindo-a falar de seus ancestrais e das tradições da família, soltando falas em mandarim aleatoriamente.
Aparentemente, eu era uma opção melhor pra ele do que uma senhora de idade que já espera a visita de Tânatos há alguns anos. Servi o Zhang com café e alguns doces que sobraram do aniversário de Nyssa e subimos pro meu quarto. Conversamos um pouco sobre gostos pessoais: Séries; filmes; roupas; cores; pessoas; lugares; eventos. Assistimos alguns vídeos de humor juntos até que, enquanto eu procurava outra coisa pra vermos, eu disse:
一 Eu me sinto pronto pra um relacionamento amoroso.
Frank parou e me olhou com cautela, como se procurasse no meu rosto algum indício de mentira. Minha voz não soava incerta ou insegura. Estávamos deitados um ao lado do outro, mas me virei de lado para esperar uma resposta vinda dele. Alguma iniciativa.
一 Você realmente quer isso? 一 Perguntei, não por ter medo de que ele voltasse atrás, afinal, ele estava ali, do meu lado, num sábado à noite. 一 Um relacionamento sério? Um namoro?
Os olhos escuros dele pareceram adquirir uma espécie de brilho suave, mas esperançoso.
一 Eu quero. 一 Respondeu, por fim. 一 Sei qual resultado isso pode ter, mas não me assusta. Eu quero um relacionamento. Quero namorar você e estar com você até nos momentos mais vergonhosos e vulneráveis. Não me importo de ser o alvo desses momentos ao seu lado.
Sorri. O tom sincero de carinho em suas palavras me aquecia o coração. O rosto exibia uma expressão calma, como se ele pudesse esperar todo o universo se condensar ou explodir, mas ainda estaria disposto a algo comigo.
Estendi a mão e acariciei sua bochecha com a ponta dos dedos. Eu não conseguia entender por completo o que eu sentia naquele momento, mas era uma sensação boa que se assemelhava a felicidade genuína. Simples, porém complexo e intenso. Acariciei as sobrancelhas dele e contornei o nariz.
Cada pedaço de Frank me parecia infinitamente lindo.
一 Eu amo você, sabia?
As palavras jorraram da minha boca antes que eu pudesse sequer prevê-las na minha mente. Ele não pareceu se incomodar, sorriu docemente e se aproximou de mim com cuidado.
一 Eu também amo você. 一 Disse de volta. 一 Antes, eu me perguntava como podia gostar de alguém com o emocional tão machucado injustamente. Mas a culpa nunca foi minha e nem sua.
Inclinei-me um pouco na direção do Zhang, tocando seus lábios com os meus e o beijando delicadamente. O momento parecia perfeito, o toque era suave, o beijo era doce e o leve silêncio no quarto lembrava-me de que aquilo, aquele instante, era só nosso. Nos separamos devagar. Todas aquelas bregices de música romântica finalmente faziam sentido.
一 Acho que nunca conseguirei agradecer por ter me ajudado com isso.
Ele mordeu o lábio, o que me deixou com mais vontade de fazer aquilo eu mesmo.
一 Não me importo com agradecimentos. Eu já tenho você e é o que me basta.
Soprei um riso, meio emocionado.
一 Bobo.
一 Sou seu, se quiser, mas não abro mão de ser bobo.
一 Não abro mão de ter você. Nem de pertencer a alguém tão incrível.
Frank sorriu.
一 Porra, você é tão...
Ele não terminou a frase, talvez por não ter encontrado palavras que se aproximassem do que queria dizer, talvez por ter ficado ocupado demais me beijando pra pensar em algo. Não sei. A única coisa que me importou foi a magnificência daquele momento.
A intensidade da coisa... er... Dá até vergonha. Mas, bem, podemos dizer que eu comprovei que sim dois corpos podem ocupar o mesmo espaço. E o tempo que demorou até que eu descobrisse isso... Demorou muito, mas valeu a pena. Cada segundo. Cada suspiro. Cada gotícula de suor. Cada toque indecente. Valeu muito a pena.
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