AS&RG -- IX -- Eu sou desinteressante? -- (-Will-)

 



 Nunca vi Nico com medo, muito menos com medo de alguém. E, sendo bem sincero, não gostei nenhum pouco de vê-lo assim. Ele tremia quase que imperceptivelmente e pude vislumbrar o terror em seus olhos escuros. Me virei para encarar o dono da voz gélida que tinha causado isso, dando de cara com um garoto magrelo, cabelo de palha, olhar penetrante e sorriso perverso. Um valentão anêmico.

 A expressão de Frank se tornou hostil, silenciosamente mortal. Valdez fez careta para o garoto, chamado de Octavian, e pôs as mãos no bolso. Passei a mão pelas costas de Neecks, para passar-lhe confiança e lancei para aquele projeto de gente o olhar mais intimidador que consegui. O moreno pareceu surpreso com o toque e me encarou, mas nem sequer abriu a boca e voltou a olhar para a mesa.

 A atenção de Octavian se voltou para mim de forma ameaçadora, mas não acanhei e intensifiquei a raiva em meus olhos. Percebi pela visão periférica que as pessoas ao redor observavam e cochichavam. Até parece que nada interessante acontece nessa escola. Pessoal barraqueiro. Será que ninguém tem nada melhor com o que se ocupar?


一 Então você é o Will Solace, o novo namoradinho do Nico. 一 Constatou o garoto, os olhos azuis escuros brilhando com mais perversidade.


 Leo tirou algumas pedrinhas do bolso e trocou um rápido olhar com Frank. Não entendi, mas não questionei. Mantive o foco em Octavian.


一 Sim, eu sou. 一 Algo me dizia que ele achava que eu estava concordando por concordar. 一 Eu e Nico estamos namorando.


 Ele sorriu com desdém.


一 Desde quando?


 Uma pedrinha voou ao lado da minha cabeça. Valdez tacou outra pedinha para o Zhang, que recarregou a porra de um estilingue. Todo mundo ficou surpreso e arquejou, o que fez Nico erguer a cabeça. Quase disse alguma coisa, mas, devido ao choque, minha voz não saiu.


一 Desde quando isso é da sua conta? 一 Leo perguntou meio alto, desafiando-o com o olhar duro.


 Percebi naquele momento que o garoto latino estava irritado de um jeito pessoal, o que levantou a possibilidade de um passado cheio de desentendimentos e ressentimentos entre os quatro ali presentes. Agora isso me envolvia de algum modo. Se Octavian fez mal a Nico no passado, eu vou saber e vou arrebentar-lhe os ossos.

 O moreno levantou da mesa e pude ver que ele não gostava nada dessa situação. Olhou para os meninos como se pedisse para que não fizessem mais alarde ou causassem mais confusão. Quando seu olhar grudou no meu, tive certeza de que tudo seria devidamente explicado, mas depois, em um ambiente mais calmo e só nós dois. Ele se virou para o incômodo local.


一 Por que está aqui? 一 Disse, áspero, conseguindo que sua voz não falhasse ao pronunciar as sílabas com desgosto.


 Octavian sorriu, presunçoso.


一 Notícias vieram até mim, Niquito, e elas me diziam que você estava saindo com alguém. 一 Ele parou para me olhar e rir com deboche. 一 Só não esperava que fosse esse daí.


 Raiva substituiu o medo no rosto de Nico ao ouvir a maneira como aquele loiro magrelo falava de mim. Ele cerrou o punho e lançou o olhar de ódio mais intenso que eu já vi alguém lançar. Frank preparou o estilingue para outro disparo, mirando a testa do "intruso" que não deveria nem ter posto o pé na escola.


一 Vá embora, Octavian. 一 O Zhang ordenou, frio e autoritário. 一 Volte para o inferno de onde veio. 


 O cabelo de palha sorriu com superioridade, olhou para todos nós mais uma vez, deu as costas e, por fim, saiu. Após a ida dele, o clima ficou mais leve e menos tempestuoso. Nico pareceu um pouco mais calmo, mas ainda tenso como a corda do estilingue de Frank antes do disparo.

 Todos voltaram a se sentar e as pessoas ao redor se dispersaram, cochichando sobre o que aconteceu nesses poucos minutos. Leo estava com uma expressão amargurada no rosto, expressão essa que eu nunca tinha visto antes e jamais esperava que logo o Leo fosse fazer essa cara.

 Nico cobriu o rosto com uma mão, batendo repetidamente a mão livre na mesa. Pus a minha em seu ombro para que ele soubesse que eu estava ali, mas o moreno só me olhou com uma tristeza profunda e desviou o foco para a comida. Sua mente devia estar uma bagunça de pensamentos e emoções a todo vapor.

 O sinal tocou e Di Angelo me deu um selinho demorado antes de ir para sua sala. Frank guardou a arminha improvisada e foi embora. Leo me lançou um olhar misterioso e disse sem som: "Amanhã, antes do quinto horário". Assenti de imediato. Valdez queria me falar algo em particular eu só torcia para que fosse sobre o recém-chegado.



☀             ✲           ☀            ✲           



 Quando eu cheguei do trabalho, Nico estava assistindo um filme do Wolverine enquanto tomava um Monster e ignorava as milhares de notificações que seu celular recebia, vibrando incessantemente na mesa de cabeceira. Tomei banho e me sentei ao seu lado na cama, puxando-o para mais perto pela cintura. Ele não sorriu, apenas corou com o toque e tomou mais um gole.

 Eu achei estranho, mas fiquei calado. Até que ele segurou minha mão e entrelaçou nossos dedos. Sorri, beijando-lhe a têmpora. O moreno deitou a cabeça no meu ombro e eu na dele. Ficamos naquela vibe até um acorde de Mozart começar a soar do telefone dele, nos atrapalhando.


一 Hazel. 一 Suspirou ele, de raiva.


 Ri e peguei o aparelho, entregando-o. Ele rejeitou a ligação, vendo as mensagens pela barra de notificação. Adivinha? Tudo sobre o encontro nada agradável com Octavian no refeitório.


一 Se Haz mudar meu toque de novo, eu vou arrancar fio por fio do cabelo dela até pedir desculpa.


一 Mas ela ama o próprio cabelo.


一 Eu sei. Uma punição é algo que se deva lembrar, Willie. Até mesmo eu já recebi um castigo que jamais irei esquecer.


 Franzi o cenho. Eu sempre soube que ele é rebelde e faz merda de vez em quando, mas nunca foram merdas que geraram muitos problemas, então o fato de ele ter sido punido pelas poucas coisas que fez/aprontou me deixou surpreso.


一 Como, por exemplo?


 Nico prendeu a respiração por um momento. Estava tenso, como se a lembrança o perturbasse.


一 No oitavo ano, fiz uma pegadinha de Halloween que resultou em um braço quebrado, um ombro deslocado e um tornozelo torcido. 一 Contou e mordeu o lábio, apreensivo. 一 Meu pai ficou muito irritado e disse que uma surra não ia me educar. Eu gostava de um jogo de cartas na época. Vivia falando dele e convencendo Leo a jogar.


一 O que ele fez? 一 Perguntei, segurando sua mão enquanto ele brincava com a lata vazia do Monster que tomava antes.


一 Ele pegou minhas cartinhas favoritas, fez uma fogueira no quintal e queimou uma por uma enquanto repetia o quanto fui irresponsável, infantil e que eu devia crescer. 一 Sussurrou.


 Nico jogou a lata para o outro lado do quarto sem falar mais nada. O moreno podia não ter verbalizado, mas eu sei, pela sua falta de jeito e pela melancolia, que esse evento de sua vida o marcou. Apertei mais forte seus dedos nos meus, tentando lembrá-lo de que eu estava ali para ajudá-lo e amá-lo, e não para julgá-lo pelo que fez ou deixou de fazer no passado.


一 Poxa... Desculpe-me por te forçar a falar sobre isso. 一 Pedi, acariciando o dorso de sua mão com o polegar, em círculos.


 Ele sorriu meio sem humor e me olhou nos olhos.


一 Não precisa se desculpar por isso. Hades estava certo em tudo. Eu precisava amadurecer.


 Como ele conseguia fazer isso? Tornar tudo tão pequeno e insignificante quanto um farelo de pão no meio de tantos outros. Nada o atinge, nada o desestabiliza, nada o faz ficar bravo, nada o faz perder o sarcasmo e o bom humor. Exceto por Octavian. Nico tem medo dele, mas não é um medinho bobo. É algo mais profundo. Um tipo de pavor só por saber que ele está no ambiente.


一 Neecks... Qual é o seu passado com aquele tal de Octavian? Pelo que eu vi, você o teme.


 O sorriso sumiu de seu rosto. Ele suspirou.


一 Ele fazia bullying comigo na minha antiga escola. Comigo e com Leo. Era insuportável. 一 Contou, desviando o olhar para o filme.


Ele fazia bullying com você? 一 Perguntei, meio incrédulo (meio? Totalmente!). Não havia somente uma coisa a se destacar naquela frase. 一 Como um cara ridículo como ele conseguia ter moral pra fazer alguma coisa?


 Meu namorado balançou a cabeça, como se fosse difícil me fazer entender a situação.


一 Octavian é bom com palavras, Will. Eloquente, convincente e bom orador. Qualquer um pode ser influenciado por ele. Por ele ser o tipo de pessoa que facilmente manipula tudo, todos os outros tinham medo dele, talvez ainda tenham. 一 Ele fez uma pausa. 一 Era fácil cair nas ciladas que ele armava. É até bom que você não o conheça como eu o conheço. Aquele cara é a personificação do capeta.


 Seu tom não foi de quem estava brincando.


一 Por que ele fazia bullying com você?


一 Porque eu gostava de só usar preto, pintar as unhas da mesma cor das roupas, mantinha um cabelo mais comprido do que os da maioria dos meninos, tenho amigos legais e saía com um garoto bonito. Eu sendo eu naquela época e... 一 Ele me beijou, alisando meu rosto devagar. 一 ...hoje.


一 Ele te bullyinou porque você é você? Você é popular na escola exatamente pela aparência e personalidade. Como ele pode ser tão idiota?


一 É o Octavian, mi amore. Não se pode esperar muito dele. 一 Suspirou. 一 Mais algo que queira saber?


 Mordi o lábio, pensando.


一 Quando soube que se apaixonou por mim?


 Observei-o rir de vergonha.


一 Deuses! Esperava qualquer coisa, menos isso.


一 Por que? Me conta como soube!


 Nico respirou fundo e ajeitou o cabelo. Ele cheirava a energético e Doritos, que eu sabia onde ele escondia. A iluminação da TV variava devido as cenas do filme, o que fazia sua pele mudar de coloração conforme a luz por ser pálido. Como alguém podia odiá-lo? Como alguém igual àquele loiro oxigenado tinha moral para praticar bullying com a minha lua?


一 Eu soube que estava fodidamente apaixonado quando sonhei com você por um mês. 一 Sussurrou a confissão, como se não quisesse que eu escutasse o que disse.


一 Sonhou comigo? 一 Repeti pelo prazer de pronunciar aquilo daquela forma.


一 Sonhei. 一 Assentiu, confirmando.


一 Por um mês? 一 Ele concordou, corando. 一 Sonhou comigo por um mês!


一 Fala mais alto, caralho! Frank não escutou a duas quadras daqui!


一 Desculpa, mas... Quando?


 Nico mordeu o lábio e tive o desejo avassalador de beijá-lo naquele instante.


一 Sabe o dia que você veio pro meu turno e a gente se falou pela primeira vez? Então, foi a primeira noite que eu sonhei com você.


一 Então passamos mais de um mês flertando ocasionalmente e você...


一 Já tava caidinho por tua pessoa? É...


一 Mas os sonhos...


一 Não era nada erótico. Relaxa.


 Sorri com malícia, provocando-o.


一 Era? Agora tá sonhando sacanagem comigo?


一 Eu não... Não foi isso que eu...


一 Di Angelo, que pervertido da sua parte.


一 Não foi isso que eu quis dizer! Sonho com você de vez em quando e eu te garanto que neles nós não transamos mesmo que eu queira.


 Abri a boca pra provocar mais um pouco, porém minha oportunidade foi arruinada.


一 Nem pense nisso!


 Ri, vendo que já o constrangi o suficiente pela semana toda. Dei-lhe um selinho e alisei seu rosto devagar, admirando cada pedaço dele.


一 Eu te amo tanto que o mundo acabaria e o universo entraria em colapso se fosse possível te amar mais um pouquinho que seja.


 Ele riu, meio comovido, e me beijou delicadamente. O beijo mudou a medida que nos recusávamos a nos afastar. Nico agora me beijava com paixão, com desejo e com necessidade. Eu o queria e ele me queria. Eu precisava dele e ele precisava de mim. Em um instante, somos um casal jovem e inocente se beijando. No outro, ainda somos um casal e somos jovens, mas não há nada de inocente na forma como seu corpo está colado ao meu e em como ele arfa quando mordisco seu pescoço de leve.


一 Eu realmente não me importo se o mundo acabar e o universo entrar em colapso. 一 Sussurrou, sua voz se tornando tudo o que queria ouvir.


一 Sabe que eu também não?


 Nos beijamos com uma intensidade maior do que antes. A necessidade que tínhamos um do outro aumentando até ser insustentável.


一 Eu também te amo pra caralho.




☀               ✲             ☀           ✲           




 No dia seguinte, tudo estava tenso. A escola toda estava com ua atmosfera mais opressoca devido a presença indesejada e apavorante de Octavian. Todos cochichavam quando Nico sorria pra mim ou me tocava. Eu estava de saco cheio de pessoas que nem ao menos me conhecem julgando os meus sentimentos e me regrando. 

 Uma colega da sala de Nico interrompeu minha aula de história com a professora Reyna pars me entregar dois bilhetes. O primeiro era do meu namorado popular, pedindo que eu o encontrasse no banheiro no intervalo. Ele não queria encontrar o loiro oxigenado e queria ficar a sós comigo. Eu entendia e até preferia.

 O segundo era de Leo, dizendo para ir até a biblioteca após o "recreio" (ele pensa, age e fala como criança). Guardei os dois bilhetes, sentindo dois tipos diferentes de ansiedade latejarem em meu peito dolorido pela mágoa. Mágoa por, não importando o quanto eu me esforce, quase sempre acabar atraindo olhares das pessoas erradas.

 Ao toque do sinal, fui ao banheiro. Não levei celular, livro, caderno. Estava de mãos abanando e por isso Neecks disse que eu devia me ocupar com alguma coisa. Naquela meia hora, minhas mãos se ocuparam com sua cintura, com o cabelo macio e as coxas. Minha boca estava sempre colada a dele ou a pele sensível de seu pescoço.

 Parecia que eu estava em uma montanha russa complexa de sentimentos que eu não compreendia e estados de espírito que eu não reconhecia. Acordei pela manhã me sentindo incrível e completo, andei pelos corredores me sentindo um incógnita e ali estava eu me sentindo a beira de um penhasco. Minhas notas não estavam boas, meu desempenho no trabalho era razoável, meus amigos estavam ocupados e desde a noite passada eu sentia que não conhecia o meu Nico o bastante.

 O intervalo acabou e fui até a biblioteca me encontrar com Leo. Entrei por uma porta que dá entre as estantes para não ter que passar pelo balcão da bibliotecária Ella porque ela me mandaria pra minha sala. Dei uma olhada geral no local, mas não avistei nem um fio de cabelo do Valdez. Caminhei entre os livros, lendo as lombadas destes enquanto passava, mas aí fui puxado para um canto meio empoeirado. 


一 Oi, cabelo de anjo. Como vai? 


一 Tô matando aula. E você?


 Ele riu e deu de ombros, ignorando a pergunta. 


一 Nico te falou sobre Octavian? 


一 Falou. Disse que fazia bullying com ele na escola que vocês estudavam antes de mudarem. 


 Leo gargalhou tão alto que temi que Ella nos localizasse e nos mandasse embora para nossas salas. 


一 Bullying? 一 Ele riu alto, desacreditado. 一 Bullying é pouco até pra resumir o que aquele anêmico fazia com a gente, um eufemismo.


 Franzi o cenho, tentando entender. 


一 desculpe, mas... O quê?


 Valdez enxugou lágrimas de tanto rir do canto dos olhos e respirou fundo, se recompondo. 


一 Octavian praticamente nos perseguia. Éramos só eu e Nico, dois jovens bissexuais vivendo a pré-adolescência da melhor forma possível, até ele decidir que nossa felicidade era uma ameaça a todos os seres vivos e não vivos do planeta.


一 Maluco... 一 Constatei, mexendo em um fio solto da minha roupa enquanto Leo recuperava o fôlego.


一 Demais. No começo, era algo leve: Zoar nossas roupas de vez em quando e barulho de beijo com as mãos se ficássemos muito perto um do outro na interpretação dele. Aos poucos foi virando algo extremamente pessoal conosco. Ele passou a cortar nossas falas quando os professores nos dirigiam a palavra com comentários homofóbicos. Juntou pessoas para atazanar a gente. 


 Senti raiva. Raiva daquele loiro patético, das pessoas que foram influenciadas por ele, da antiga escola, de tudo que pudesse tê-los magoado. O latino e minha lua não merecen nada disso. É tão injusto. 


一 Apesar de a escola lentamente ter virado uma espécie de inferno, ainda éramos a dupla mais legal de lá e tínhamos nossos rolês românticos. Foi quando Nico tava saindo com um menino top e eu com o Connor, meu ex-namorado.


 Ele mordeu o lábio, hesitando.


一 Não precisa falar disso, Leo. 


一 Não! 一 Lágrimas de choro caíram de seus olhos e ele me encarou com uma determinação triste e melancólica. 一 Eu quero. Eu preciso desapegar.


 Pus a mão em seu ombro como forma de apoio. 


一 Quando conheci Connor, achei que ele ia me zoar porque tava me encarando muito. Mas ele só ajeitou meu cabelo e sorriu, dizendo que eu era bonito. Pouco depois, ele pediu meu número e trocamos redes sociais. Saíamos ocasionalmente antes que nosso namoro se tornasse algo concreto. Gostávamos um do outro e tínhamos uma dinâmica parecida. Tudo se encaixava, tudo funcionava bem, até que...


 Ele não concluiu o pensamento, um pouco aéreo.


一 Até que?


一 Octavian se intrometeu. Quis estragar tudo, como sempre faz. 一 Leo pausou, como se fosse doloroso pronunciar as próximas palavras. 一 Manipulou e inventou mentiras que me fizeram parecer um aproveitador nojento. Connor, mesmo relutando, acabou sendo convencido da minha suposta falta de caráter. Ele passou a me odiar. 


 Apertei seu ombro quando sua voz falhou. 


一 Sinto muito. O que aconteceu depois?


一 O clima ficou insuportável, então ele mudou de escola. Aquele oxigenado manipulador infernizou a minha vida e a vida de Nico ainda mais. Foi quando nos mudamos juntos de lá e viemos pra cá. Só que o mundo é pequeno e Connor também está aqui.


一 E o inferno continua.


一 Parcialmente, mas sim. Confesso que eu conseguia ser bem desagradável. Já fiz umas piadas insensíveis. Não sou perfeito. Tenho minha parcela de culpa, isso eu não nego, mas Octavian inventou 84% da história toda. Os resultados...


一 Fora desastrosas. Eu entendi e sinto muito. Você parece gostar muito dele.


 Leo suspirou e olhou para os próprios pés.


一 Algumas coisas nele ou algo que ele faz me traz o questionamento: "eu superei ele?". A resposta não vai mudar tão fácil. Eu realmente amei Connor, Will. Amor é um sentimento profundo, que cria raízes em nossos corações e que se alimenta dos momentos que passamos com as pessoas que amamos. Quando bem cultivado, o amor gera flores e frutos. Se correspondido, é como o céu. Amar e ser amado. Nem sempre essas duas coisas estão presentes juntas numa relação.


 Passei o dedo pela lombada de um livro esquecido, removendo dela uma grosa e espessa camada de poeira. Limpei o dedo na calça.


一 Acha que Connor sentia o mesmo?


 O rosto de Valdez estava marcado pelo caminho das lágrimas que tinham escorrido.


一 Connor gostou de mim, disso eu tenho absoluta certeza. Mas me ama? 一 Ele balançou a cabela de um lado para o outro, devagar. 一 Nesse relacionamento, posso ter trilhado o caminho do amor sozinho.


一 Isso não te entristece?


 Ele deu de ombros.


一 Ás vezes, mas não posso culpá-lo. Octavian inventou toda uma narrativa se baseando em uma única vez que eu fui meio babaca. Me pintou como um completo imbecil por causa de um "deslize". Não vou me matar de tanto esforço só pra mudar a opinião formada de um marmanjo como Connor Stoll.


 Assenti, entendendo seu ponto de vista. Leo tinha se esforçado para manter o relacionamento, mas a lábia de Octavian é implacável. No fim, parece que o vilão sempre tem a maior vantagem até que você perceba que o vilão não tem o poder que nós, os protagonistas, temos dentro da gente. Temos o caráter, temos a coragem e temos a lealdade. Amizades verdadeiras são raras e valorosas.


一 O que vocês dois estão fazendo aqui? 一 A bibliotecária Ella sussurrou com raiva. Ela raramente fala mais alto que isso. 一 Sentem-se em uma mesa se já terminaram de dialogar.


 Eu achei que ela nos mandaria embora, então fiquei surpreso. Nos levantamos enquanto Ella se afastava e retornava ao seu balcão. Abracei Leo, o que o pegou desprevenido. Sussurrei palavras de conforto na esperança contado sobre Octavian e ele me agradeceu por ter escutado. Valdez era meu amigo e amigos se apoiam até o fim. Saí da biblioteca, disposto a fazer tudo valer a pena. Custe o que custar.



☀                 ✲               ☀                ✲                   



 Depois de terminar um trabalho de Biologia com Frank na sala de informática, eu ia entregar ao professor pra recuperar ponto, mas fomos barrados no corredor pela pessoa mais azeda de toda a escola. Aquele loiro oxigenado olhava para nós com um ar de superioridade e desdém, o que me lembrou Naomi e sua expressão altiva enquanto me criticava por algo simples que eu havia feito.


一 Então a duplinha de machões já terminou de estudar? Que rápido. 一 Debochou, sorrindo torto.


 Revirei os olhos, com pouca paciência para lidar com aquele estrupício. 


一 Pedaço de merda. 一 Sussurrei apenas para Frank ouvir e este riu, fazendo Oclixo erguer uma sobrancelha para nós.


一 Do que tá rindo, japinha?


一 Eu sou chinês. 一 Corrigiu-o. 


一 E eu tô pouco me fodendo pra isso.


一 Isso foi muito xenofóbico. 一 Digo eu, cruzando os braços. 一 Você pode ser processado.


一 Por um comentário entre amigos? 一 Ele gargalhou alto. 一 E quem liga?


一 Eu ligo. 一 Zhang se pronunciou. 一 Você sabe que eu sou chinês e fez o comentário de propósito. Além de que não somos amigos.


 O cabelo de palha dispensa o desconforto de Frank com um gesto, como se mandasse embora um garçom inconveniente. Havia muita soberba no modo como ele falava e olhava para nós. Meu amigo estava cada vez mais incomodado. A imigração de sua família nunca foi um assunto bom de se pôr na roda e ter sua nacionalidade e ancestralidade desdenhada por Octavian já era demais.


一 Ok, já chega. 一 Me aborreço, mas tento manter as coisas calmas com o resto do meu autocontrole. 一 Dá pra você pedir desculpas e deixar a gente ir?


 Ele nos analisou friamente.


一 Deixa eu pensar. Hm... 一 O sorriso que se espalhou por seu rosto foi cruel. 一 Não.


 Cerrei o punho, mas me contive.


一 Então que se foda.


 Peguei o Zhang pelo pulso e passei por Octavian a força, empurrando fortemente seu ombro para o lado que eu tivesse passagem. Pessoas como ele e minha mãe me dão vontade de cair de um penhasco. Eu sou uma pessoa calma, mas fiquei com tanta vontade de gritar ou bater nele que era difícil controlar a raiva que me consumia.


一 Nunca convivi com alguém tão sem conteúdo quanto você, Solace. 一 Gritou o oxigenado e eu ignorei. 一 Fora o seu pai morto e a mãe sem noção, você não é nada. Apenas um típico nerd que o popular da escola namora por pena.


 Parei de andar, soltando o pulso de Frank. Ele pôs as mãos nos meus ombros, tentando me confortar com o olhar gentil.


一 Não o escute, Will. Não dê bola pro que ele fala. 一 Me advertiu. 一 Octavian era horrível com Leo e com Nico, então vai ser com você também. Não dê corda a ele. Deixe-o falar só.


 Eu queria acatar aquele conselho, mas algo se revirava dentro de mim.


一 Nico está com você porque não achou alguém melhor. Vai te largar assim que encontrar, o que, convenhamos, não deve demorar.


 Olhei para o chão, tentando segurar a vontade de chorar de tanta raiva que sentia. Meu corpo tremia pelo esforço que me conter exigia no momento.


一 Você é tão desinteressante. Seus amigos devem odiar ouvir você falar de super herói e desenhos dos anos 80. 一 Riu ele com o próprio comentário.


一 Cala a porra da boca, Octavian! 一 Leo gritou ao longe, se aproximando. 一 Seu filho de uma puta barata! Saco de merda! Seu...


 Valdez quase foi pra cima do loiro asqueroso, mas Frank o segurou, dizendo palavras calmantes e o chamando por apelidos carinhosos em chinês. Leo quase deu uma voadora em alguém que passava por perto.


一 Se toca, Solace. 一 Ele ignorou a fúria do latino e continuou a falar. 一 Todos te abandonarão, cedo ou tarde. Como seu pai, como seus amigos de infância, como sua mãe. É tudo questão de tempo.


 Eu ia fazer merda se continuasse ali, portanto tentei ir embora. Só que...


一 É como eu pensei. 一 Ele riu. 一 Você é inofensivo. Caso não saiba, inofensivo é igual a indefeso. E indefeso é igual a fraco. Fraco!


 Enquanto ele se dobrava de tanto rir, minha raiva atingiu níveis que eu nem imaginava que pudessem existir. Chegou a um nível que nem era raiva mais. Era ódio. Ódio profundo, que vem do fundo da alma e te corrói a medida que percorre suas veias. Caminhei rapidamente na direção de Octavian, preparei o punho e lhe acertei o soco mais forte da minha vida.

 O som seco do impacto que me trouxe um tipo de satisfação que eu nunca tinha sentido antes. Aquele loiro metido a rei idiota caiu para trás e imediatamente levou as mãos ao nariz, gritando a plenos pulmões pela dor. Os ossos da base dos meus dedos latejavam incessantemente, mas ignorei. As mãos de Octavian ficaram ensanguentadas numa velocidade alarmante. Não fiquei preocupado ou mal pelo que fiz. Ele merecia.

 Não me lembro de muita coisa depois disso. Uma ambulância foi chamado, um amontoado de estudantes foi mandada de volta às suas salas e tanto Octavian quanto eu fomos socorridos. Ele quebrou o nariz e eu torci o pulso, além de ter quebrado alguns dedos. Toda minha mão direita foi enfaixada, mas isso não era exatamente um problema.

 Minha mãe seria notificada do que rolou e sua presença na escola seria solicitada na parte da tarde. Eu estava suspenso por três dias. O melhor? Eu nem ao menos me importava. Não me sentia mais leve ou tinha descarregado as emoções ruins que vinham fermentando em meu âmago nos últimos tempos. Eu descontei o ódio, mas não o resto do que estava sentindo. E eu precisava fazer isso logo.



☀                ✲                



 Reyna ia ficar na escola até as duas da tarde por causa da reunião que teria com os professores, então eu e Neecks voltamos a pé. O moreno parecia preocupado com a minha mão e meu silêncio. Não quis falar, não quis olhar pra ele, não quis existir. O que ele tava pensando ao meu considerar seu namorado? Tinham vários outros caras mais bonitos e mais interessantes que facilmente me substituiriam. Então... Por que?

 Minha mãe tinha razão. Eu sou uma perca de tempo. Sou apenas um adolescente genérico fã de heróis e ficção científica. Sou um garoto padrão. Loiro do olho azul. Os únicos diferenciais são os cachos e as sardas. Eu sou apenas mais um na mão de Nico e uma hora ele vai enjoar de mim e de estar comigo. Todo esse tempo desperdiçado poderia ser gasto em algo mais produtivo. Eu não sou lá essas coisas que Di Angelo fiz e cedo ou tarde ele vai perceber isso.

 Quando entrei em casa, marchei com determinação até o quarto dele. Peguei minha mochila e catei minhas roupas e livros que estavam espalhados pelo cômodo. Nico não estava entendendo nada, mas pareceu alarmado. Ele não me seguiu de imediato e sim foi até a cozinha. Quando parou na porta, com um copo de água em cada mão, e viu o que eu fazia, deixou as águas na cômoda e veio até mim na hora, preocupado.


一 Ei, ei, ei! 一 Ele segurou os meus braços e ficou na minha frente. 一 Tá tudo bem.


 Não o olhei, empurrando-o grosseiramente para o lado para que não me atrapalhasse.


一 Will! Amor, para!


 Continuei a arrumar minhas coisas. Ignorei a dor no pulso enfaixado, ignorei sua voz doce me chamando por apelidos românticos, ignorei a dor no peito, ignorei o fato de que Octavian é o Octavian, ignorei tudo. Eu precisava ir embora.


一 Will, o que você tá fazendo? 一 O moreno segurou o meu pulso bom.


 Me soltei bruscamente e ouvi um leve baque. Meu coração se apertou, me fazendo parar na hora.


一 Nico?


一 Eu tô bem. Só... para. 一 Pediu, suavemente.


 Obedeci e o olhei nos olhos. Ele não se aproximou.


一 O que houve, Willie?


 Pensei em cada palavra de Octavian e me senti mal. Cada sílaba doía como uma faca em meu peito. Desviei o olhar por um momento, mas logo voltei a encará-lo. Vi a ansiedade e a preocupação em seu olhar. Me senti culpado.


一 Eu sou desinteressante?






Comentários