Não conseguia parar de pensar no beijo surpresa com o qual Will se despediu de mim à tarde. Quis voltar e reviver aquele momento outra vez. Mas não era possível voltar no tempo e não parecia sequer seguro. A única coisa que eu podia fazer era repassar na memória, como um filme, as minhas partes favoritas, os momentos mais valiosos do todo.
Assim que entrei, Hazel me puxou pela mão até a cozinha. Marie e Bianca sovavam massa de pão e uma bandeja de biscoitos já estava pronta para ser colocada no forno. Cumprimentei-as enquanto tirava o casaco e as luvas.
一 Olá, querido. 一 Recepcionou-me Marie, a voz doce como o aroma que se espalhava pela cozinha. 一 Como foi sua tarde? Se divertiu?
Perguntei-me mentalmente se Hazel falou onde fui e com quem voltei, mas ela não demonstrou nervosismo e nem euforia, então talvez nem tenha me visto beijar Will. Bia não tirou o olho da massa, mas desconfiava ter visto tudo do janelão.
一 Foi boa. Me diverti. 一 Respondi. 一 Como foi o trabalho?
Marie suspirou e me sentei no sofá que fica colado à janela para me livrar dos tênis.
一 Apenas atendendo, vendendo, anunciando, instruindo novos funcionários e ouvindo críticas dos clientes. 一 Ela respondeu, pouco feliz.
Hazel fechou a porta do forno e observou lá dentro por alguns instantes. Depois se levantou e esfregou uma mão na outra, limpando sujeira inexistente. Ela disse:
一 Não ligue pra eles. São indivíduos insensíveis que não merecem o seu tempo e nem sua preocupação.
一 Sábias palavras, Haz. 一 Sorriu Bia. 一 Será que você poderia pegar mais farinha pra mim? A massa está um pouco molenga demais.
Hazel sorriu de volta.
一 Claro! 一 Respondeu.
Após me livrar da maioria das roupas pesadas, aproveitei o ar-condicionado e aspirei o cheiro de massa cozinhando, mas não passou disso. Maria pôs o pão no forno e foi se deitar. Ainda eram três e quarenta, então eu tinha bastante tempo de sobra pra fazer o que eu quisesse pelo resto do...
一 Nico. 一 Chamou-me Bianca. 一 Poderia ir na casa dos Grace e entregar esses cookies para Thalia?
Ela pôs uma cesta na mesa.
一 Por que eu iria...?
一 Ótimo. 一 Me interrompeu. 一 Vá antes que o couro esquente.
E saiu. Simples assim.
一 Quando foi que fiz o teste pra ser a Chapeuzinho Vermelho e você a mãe irresponsável? 一 Gritei.
Bia gritou do próprio quarto:
一 No dia em que nasceu, mas as gravações foram constantemente adiadas por questões inesperadas e insolúveis na época em que ocorreram. Mas hoje dá. Apenas atue o que o seu personagem faz.
Grunhi, não gostando da ideia de voltar lá pra fora outra vez. Estava um frio glacial e eu já tinha me despido das roupas de frio e ficado apenas com as normais que estavam por baixo. Murmurei alguns palavrões e expressões sujas em italiano, como uma sugestão de onde ela podia tropeçar e cair, de preferência, de boca. Fica a cargo da imaginação de vocês.
Eu bem que podia virar as costas e deixar a cesta lá. Bem que podia me trancar em meu quarto até que ela deixasse essa baboseira pra lá. Bem que podia ir tomar banho e esquecer que o mundo existe. Bem que podia seguir minha rotina e pronto. Fim de papo. Quando um não quer, dois não beijam. Mas, obviamente, eu não fiz nada disso.
Vesti novamente as roupas de frio: casaco, calça, luvas, gorro, protetores de orelha, meias e tênis. Peguei a cesta e fui, emburrado, até a casa dos Grace, nossos primos. Bati os pés o caminho todo, mal-humorado com aquele papel estúpido que eu nem sabia que tinha feito teste. E conseguido.
一 Bastarda. Manipuladora. Preguiçosa...
Quando bati a porta da residência que devia visitar, engoli alguns xingamentos. Thalia abriu a porta sem cerimônia e me olhou de cima a baixo. Retribui o olhar. Ela usava uma regata cinza e um short de academia. O cabelo curto e espetado parecia querer conduzir energia para fora do corpo. Os olhos azuis deviam dar uma carga elétrica em todo mundo, mas não me deram, pelo contrário. Me deu um aperto ruim no peito.
一 Hm... Oi? 一 Murmurei.
Thalia piscou, atordoada.
一 Oi, Nico. Tudo bem? 一 El ergueu um dedo rapidinho e se virou para trás. 一 Meninos, código dezesseis meia quatro.
E se voltou para mim de novo, como se nada houvesse acontecido. Fiquei tentado a perguntar sobre o código e o que ele significava, mas me controlei e foquei no motivo da minha visita.
一 Bianca me pediu para entregar-lhe isso. 一 Dei a cesta para ela. 一 E não me explicou por quê.
Thalia pareceu surpresa, espiou o conteúdo e deu um sorriso.
一 Obrigada. Ãn... 一 Ela comprimiu os lábios por um instante. 一 Quer entrar? Tá tão frio. Não quer tomar um chocolate quente?
Dei meu melhor sorriso.
一 Pode ser.
Ela me cedeu passagem, trancou a porta e me conduziu até a cozinha, passando pela sala. Will e Jason conversavam lá, sentados no sofá. Meu coração disparou, mas controlei o nervosismo e os pensamentos com certo esforço. Acenei e passei sem olhá-los duas vezes.
Na cozinha, Thalia me serviu o chocolate e me entregou o copo. Tomei alguns goles com cuidado, pois estava fervendo, mas aproveitei a quentura para aquecer as mãos. Percebi que ela me encarava, estudando meus movimentos. Olhei-a por um instante, porém, não consegui sustentar o contato visual por muito tempo. Seu olhar era estranho.
一 O que rola entre você e minha irmã? 一 Perguntei, para quebrar o silêncio.
O olhar permaneceu.
一 O que rola entre você e o meu sobrinho? 一 Rebateu.
Sorri.
一 Respondo se você responder primeiro. E que seja concreto.
Thalia sorriu de um jeito levemente nervoso. Meu coração estava batendo muito rápido.
一 Eu... gosto da Bia. Mais do que eu poderia sequer imaginar no começo. 一 O brilho sonhados em seus olhos se acentuou naquele momento. 一 E você?
Suspirei.
一Will é muito especial e eu gosto dele...
一 Mas...
一 Mas eu tenho medo de estragar tudo sendo precipitado.
Thalia assentiu, como se me entendesse.
一 Precipitado em relação aos sentimentos dele que podem ou não ser por você.
一 Exatamente.
Virei o resto do copo, tentando me sentir quentinho por dentro de novo, sem sucesso. Não me preocupei se estava deixando meu estado de tristeza transparecer, apenas me permiti ficar triste. A verdade havia sido exposta e eu não podia fingir que não me importo.
一 Nico. 一 Thalia me chamou. 一 Independentemente do que parece ou não, tenho certeza que ele tomará a decisão certa.
Assenti sem ter certeza. Decidi que era hora de ir embora.
一 Muito obrigado pelo chocolate quente, mas eu preciso ir agora.
Ela concordou e me levou a porta.
一 Eu que agradeço pelos biscoitos. E pela sua visita.
一 Foi um prazer. E, hm...
一 O que foi?
一 O que a gente conversou na cozinha pode ficar entre nós?
Thalia sorriu e fez um gesto em frente aos lábios, como se os trancasse. Depois, fez a chave inexistente sumir de sua mão. Riu.
一 Claro que sim.
一 Obrigado.
Após ouvir o trinco, segui o trajeto para chegar em casa, me sentindo questionavelmente mais leve por ter dito como me sentia. De alguma forma, tinha a impressão de ter mais que uma prima ou uma figura mal-interpretada de prima em Thalia. Em possuía uma amiga.
✲ ✲ ✲ ✲ ✲
Mais tarde, à noite, não consegui dormir. Toda a lembrança e as sensações do beijo vieram com tudo. Esperei até às 11, quando todos já tivessem adormecido para que eu pudesse pegar no celular sem chamar atenção pelo brilho da tela escapando por debaixo da porta, mas as horas se arrastara e me sucumbiram ao tédio.
Liguei para Leo assim que deu 1 da madrugada. Ele me contou como foi seu domingo e eu falei do meu. Não falei do beijo. Enrolei, desviei de assunto e falei o que tinha lido e visto na internet antes de telefonar. Leo não pareceu se incomodar ou sequer notar. Enchi linguiça, o que não é do meu feitio, e não toquei em nenhuma questão sentimental.
Depois de pouco mais de uma hora de conversa, relembrei o porquê ele era o meu melhor amigo: Leo me conhecia bem demais. Definitivamente, me conhecia bem até demais. Ele sabia quando minto. Ele sabia quando eu estava nervoso. Ele sabia quando eu mudava de assunto.
一 Então... O que realmente tá rolando?
一 Eu não sei d...
一 Ah, garanto que sabe exatamente do que eu tô falando. Desembucha.
一 Leo, eu não q...
一 "Eu não quero falar sobre isso". Mas eu quero. Fala. Logo.
一 Que horror! Ok. Eu conto. Feliz?
一 Só depois que contar.
Suspirei, pouco a vontade.
一 Depois do café e depois de contar que gosta de mim, ele me trouxe em casa. Eu fui entrar, mas ele me puxou e...
一 Pera, pera, pera. Ele o que?!?
一 Disse que gosta de mim?
Ouvi um barulho de algo pesado caindo no chão.
一 Tá tudo bem aí?
一 Eu é que devia fazer essa pergunta.
一 Sabe que não precisa.
一 Preciso sim!
Bufei.
一 Tá tudo bem aí com seu coração?
一 Meio abalado, mas... Acho que sim.
Silêncio. Deu até pra ouvir os grilos.
一 Mais alguma coisa que eu deva saber?
Respirei fundo e preparei os ouvidos.
一 Ele me beijou.
Um, dois...
一 Como é que é?!?
Para minha surpresa, Bianca escancarou a porta do meu quarto e exclamou a mesma coisa que Leo ao mesmo tempo que ele. Por um momento, não soube como reagir à invasão dela. Depois, fiquei com raiva porque percebi que ela estava escutando a minha conversa particular. No entanto, nem tive tempo de falar quanto mais abrir a boca pra isso.
一 Eu sabia! 一 Acusou ela, quase enfiando o dedo na minha cara. 一 Eu sabia! Você tava todo nas nuvens quando entrou. Uma pena eu não ter visto antes ou durante esse beijo.
Explicado aquele olhar desconfiado quando ela se atreveu a erguer os olhos para mim. Ai, ai. Eu mereço...
一 Essa voz é a da tua irmã?
Levei o celular para perto da boca e sussurrei:
一 É sim. Carne, osso e intromissão. Na minha frente.
Leo suspirou.
一 O que ela tá fazendo aqui?
一 Tirando satisfação. 一 Respondeu ela.
一 Invadindo o meu quarto! 一 Gritei, corrigindo-a. 一 E ouvindo tudo atrás da porta com um copo de vidro.
Bia pôs o copo na minha escrivaninha.
一 Juro que não fiz por mal.
Não era parte do meu plano discutir com minha irmã mais velha, mas fiz mesmo assim.
一 Mas fez!
一 Por que eu estava preocupada com você!
一 Eu estava feliz. É com isso que se preocupa? Com a minha felicidade? Ela te incomoda?
一 Óbvio que não me incomoda! Mas não é todo dia que se chega em casa sorrindo do jeito que você sorria. Fiquei preocupada com o motivo.
Me calei. Não por não saber revidar e sim porque eu não queria me exaltar, o que acordaria Hazel e Marie. Eu não queria ficar de castigo por virar a noite. Me sentei na cama, sem ter percebido que me levantei, pesadamente. Bufei, só depois me lembrando de Leo.
一 Nico? Ainda tá aí ou pulou pela janela?
一 Quem você acha que tá segurando o telefone?
一 Antes a Bianca, agora, pela proximidade da voz, você.
一 Não me confunda com essa intrometida, Leo.
Bia fez cara de ofendida.
一 Eu sou sua irmã. E mais velha, ainda por cima. É fundamental que me respeite como uma autoridade.
一 Eu não tô nem aí!
E eu acabei fazendo o que menos queria: Me exaltei. Atingi minha cota semanal de irritação. Eu não precisava de nada daquilo. Eu não precisava descobrir que o garoto que eu gosto sente o mesmo. Eu não precisava entregar uma cesta de biscoitos idiota. E, certamente, não precisava da desconfiança de Bianca, da preocupação dela, da intromissão descarada dela e nem de suas acusações.
Minha visão embaçou com lágrimas que eu não pude segurar.
一 Eu não tô nem aí se você pensar isso ou pensar aquilo de mim. Eu não tô nem aí se você vier me acusar. Eu não tô nem aí pra sua "autoridade de irmã mais velha". Me deixa viver.
Toda a raiva de Bianca esvaiu de seu rosto. De repente, ela estava me abraçando e pedindo desculpas. Aceitei e me conformei que sou um ser humano sensível e incapaz de controlar o que sinto. Apenas com a possibilidade de entender meus sentimentos e escolher o que fazer com eles.
Comentários
Postar um comentário