Naquele momento específico, desejei fervorosamente que ficasse mais quente. Que o sol de fato começasse a emanar calor de verdade ao invés de apenas iluminar tudo. Mais tarde, naquele mesmo dia, desejei que estivesse ainda mais frio.
Toda a vez que eu inspirava, tinha a sensação de aspirar gelo em pó. E quando expirava, minha respiração se condensava no ar. Todos vestiam roupas pesadas de inverno: Blusas de manga comprida embaixo das de manga curta; casaco acolchoado; gorro; protetores de orelhas peludos; meias grossas e quentes; luvas; máscaras para manter o rosto aquecido e tênis.
Eu mal esperava que, no meio do dia mais congelante do inverno, alguém fosse me convidar para um café. A cafeteria era aconchegante de um jeito familiar. O ar cheirava a pães de queijo e chocolate quente. Os aquecedores faziam o seu melhor apesar da porta não parar de convidar o vento frio das ruas para entrar e perturbar clientes.
Era um lugar agradável, mas não encontrei a pessoa que tinha me chamado. Olhei as horas no celular e constatei que estava adiantado em, no mínimo, vinte minutos e meio. Guardei o telefone no bolso e me sentei em uma mesa vazia ao lado de um janelão com vista para a rua movimentada.
Logo que me acomodei, uma moça um pouco mais velha que eu em roupas clássicas de garçonete (uniforme de cafeteria; avental e um bloco pequeno e grosso na mão esquerda, a caneta na direita) veio perguntar se eu queria alguma coisa e me deu um cardápio.
Assenti com a cabeça e pedi café com leite. Observei o menu enquanto a moça se afastava vendo algumas variedades de lasanha e os preços. O cafpe custava 2,50, com apenas 10 centavos adicionais pelo leite, mas o refil era grátis e pela quantidade de vezes que o cliente quisesse.
Assim que meu pedido chegou, sorvi um gole e comecei a ler sobre os lanches disponíveis. Chamei a garçonete e pedi determinada porção de pães de queijo. Se a pessoa que eu aguardava fosse demorar o tanto que eu achava que demoraria, tinha o direito de beliscar alguma coisa enquanto o esperava.
Depois de uns minutos, deixei o cardápio de lado e peguei meu celular, começando a mexer em minhas redes sociais com os dados móveis. Até que meu petisco chegou e a moça me deu a senha de Wifi do lugar. Mordisquei o pão de queijo e mandei mensagem para Leo.
📱 Você está falando com Isqueirinho 📱
Isqueirinho: Ei, Ghost Boy
Onde vc tá?
Fui na tua house
Chamei, chamei, chamei e nada
Você: Hello, Leo
Adivinha quem me convidou para um café?
Isqueirinho: Encontro em pleno inverno?
Tá podendo, ein
Você: Aff
Tá, tá
Mas adivinha quem chamou
Isqueirinho: Bryce Lawrence?
Você: Credo!
Não, não, não
Isqueirinho: Desde que você esculachou o cara, ele é caidão por vc
Você: Que nojo, Valdez
Isqueirinho: Beleza
Não foi ele
Hm...
Você: Pense bem
Isqueirinho: Will Solace?
Vc tem a maior parte das aulas com ele, já fizeram trabalho juntos e é até fofo de observar vcs
Você: Acertou
Isqueirinho: OMG
Ele te convidou? Pq?
Você: Slá
Vou descobrir
Isqueirinho: Quando chegar em casa me conta tudo
Você: Pode deixar
Bye, bye
Isqueirinho: Bye
📱 Você ficou offline 📱
A conversa foi até que rápida, mas parecia muito mais. Leo sempre foi meu melhor amigo, desde criança. Na época e hoje, ele era considerado esquisito por gostar mais de máquinas do que de pessoas e eu por preferir mais os mortos do que os vivos. Foi fácil ser diferente quando se tinha alguém igual a mim.
Aos poucos, vi que não precisava me encaixar em nenhum padrão, apenas formar um grupo das pessoas que se sentiam como eu me sentia: De fora, ridicularizado por ser "anormal". Logo, outras pessoas foram se juntando a mim e a Leo. De repente, eu tinha um grupo particularmente grande de amigos, cada um com seu problema.
Hazel, minha meia-irmã, passou a fazer parte da minha rotina escolar, mais que o normal. Piper, que era namorada de Jason, também é amiga de Leo há muito tempo e se juntou definitivamente ao GEP, Grupo dos Esquisitos e Problemáticos, depois de ficar perdida quanto a quem era e o que quer da vida. Frank também se aproximou depois da morte da mãe, mas já tinha problemas bem antes disso.
E há também os membros que nunca estiveram longe desde a fundação do GEP, como Percy, Annabeth e um amigo próximo deles, Grover Underwood. Todos eles fazem parte do grupo mesmo que não compareçam as reuniões semanais ou que não comparecessem a todas elas.
Minha porção de pães de queijo acabou e quando pensei em pedir outra, o tilintar suave do sino da porta da loja me impediu. Ao olhar para trás, um cara da minha idade se dirigiu ao balcão. Cachos dourados emolduravam seu rosto forte; olhos incrivelmente azuis pareciam ter luz própria; sardas pela face esbelta e um sorriso perfeito iluminava tudo a sua volta. Vestimentas pesadas de inverno amarelo-sol cobriam-lhe o corpo atlético. Era Will.
Ele sorria para a atendente, que ficou nervosa diante de sua presença, e teve que repetir o pedido três vezes. A menina cobriu o rosto com as mãos, quase entrando em desespero, e chamou por outro colega em espanhol. A coitada não esperava fazer mais do que preparar bebidas no balcão.
Pouco depois, um rapaz latino, porém mais fluente em nossa língua, tomou o lugar dela e atendeu Will Solace. O garoto escreveu o pedido em um papel e passou para um colega ao lado, para que o preparasse. Enquanto isso acontecia, eles conversavam como velhos amigos que não se falam há tempos.
De repente, ele pareceu sentir que estava sendo observado e ergueu cabeça exatamente em minha direção. Seu olhar cruzou com o meu e eu, quase que, imediatamente desviei os olhos. Meu coração acelerou, os batimentos rugindo em meus ouvidos.
Meu medo de ser notado me fez olhar pra frente e não me fixar em mais nada. Com o coração na mão, me xinguei. Me repreendi por olhar demais.
Enquanto eu me dava um sermão, ouvi passos se aproximarem devagar. Meu rosto fervilhava de vergonha e minha vontade foi me esconder debaixo da mesa, mas me contive o suficiente para ficar parado. Will passou por mim e se sentou na cadeira que havia na minha frente. Quando atrevi-me a olhá-lo, um sorriso largo lhe enfeitava o rosto.
一Você está aqui! 一 Exclamou, como se houvesse se dado conta disso naquele instante. 一 Não achei que viesse ou que chegasse na hora.
Suspirei e tentei parecer sério.
一 Eu cumpro com meus compromissos, Solace. 一 Respondi.
Seu sorriso apenas aumentou.
一 Não duvido.
Fulminei-o com o olhar. Mas ele estava concentrado em outra coisa.
一 Percebo agora que chegou cedo.
Ops! Ele notou...
一 Já estava aqui quando mandou mensagem. 一 Menti.
一 Mas você nunca ouviu falar desse lugar. 一 Rebateu ele.
一 Assim como a maioria das pessoas, entrei aqui pra me aquecer e comer alguma coisa.
一 Mas você não é como a maioria das pessoas. Sequer gosta de sair no inverno porque a neve gruda em seus sapatos e molha o chão quando derrete.
Franzi as sobrancelhas.
一 Como sabe disso?
Will deu de ombros.
一 Eu te conheço, Di Angelo.
Suspirei, derrotado.
一 Admita, Nico. 一 Meu nome soou como algo mágico na boca dele. 一 Admita que ficou ansioso em me ver.
Ao mesmo tempo em que falava, se debruçou na mesa. Seus olhos capturaram os meus e eu não consegui desviar. Um ar-condicionado ligou na potência máxima no meu estômago. Meu coração parecia querer sair do peito. Permaneci firme e escondi as mãos trêmulas debaixo da mesa, para que ele não as visse e zombasse de mim.
Por fim, sussurrei:
一 Talvez...
Ele ficou me encarando por um tempinho, mas abriu outro sorriso e voltou ao seu lugar. Um rapaz, pouco depois, trouxe uma bandeja em um braço e, com a outra mão, ele colocou tudo na mesa. Dois copos grandes, um de café e outro de chocolate quente, e dois pratos com salgados esquentados no microondas. O garçom retirou minha caneca de café frio e o prato vazio, indo embora logo em seguida.
Depois disso, o loiro conteve o riso bobo, como se estivesse pensando sempre em uma piada, e começou a parecer nervoso. Batia os dedos na mesa de vez em quando; esfregava-os uns nos outros; despedaçava o guardanapo; bebericava o café, beliscava a massa do pastel. Tudo sem me olhar nos olhos. Isso era estranho, até pra ele.
一 E aí? Não vai falar nada?
O garoto ajeitou os cachos dourados sob o gorro, suspirando. Ele fechou os olhos azuis e lentamente, porém sem som, contou até dez. Quando tornou a abri-los, estavam hospitaleiros e frios, como o ambiente que nos cercava.
一 Irei, e, hum... 一 Ele pigarreou, limpando a garganta. 一 Espero que me desculpe pela minha falta de jeito.
Tomei dois goles de achocolatado, ponderando sobre o que responder.
一 Se eu, por algum acaso, resolver te desculpar, terá que iniciar a conversa e responder a uma pergunta que tenho pra te fazer.
Meu tom pragmático deve ter feito um arrepio subir por suas costas. Ele franziu a testa, mas não demorou nada para que sua expressão suavizasse e ele dissesse:
一 Tudo bem. Pode perguntar.
Continuei sério.
一 Por que me chamou? Afinal, isso é ou não é um encontro?
Will sorriu, quebrando a tensão.
一 Você disse que era apenas uma pergunta. 一 Seus olhos brilharam de divertimento.
Retribui o sorrise.
一 Eu disse que você responderia a uma pergunta, não especifiquei que seria uma. 一 Rebati.
Ele fez um biquinho com os lábios e concordou com a cabeça.
一 Justo. 一 Julgou. 一 Mas qual delas eu respondo?
Foi a minha vez de dar de ombros, mostrando que não importava. Para enfatizar, disse:
一 A que você quiser...
O liro ficou pensando por um tempo, alguns minutos, observando a rua movimentada. Contemplei-o por um instante. Como ele consegue ser tão lindo? Bendita seja a mãe dele. Tomei meu achocolatado e comi minha coxinha enquanto esperava. De repente, ele estalou os dedos.
一 Certo. Te responderei com outra pergunta.
Engoli o bolo alimentar e concordei.
一 Válido.
Will pigarreou.
一 Será que não posso passar um tempo com alguém que eu goste?
Por um instante, esqueci como se respirava. Engasguei com o ar e precisei virar o resto do meu achocolatado para evitar um acesso de tosse. As palavras dele ressoaram em minha mente, cada sílaba fazia com que eu me sentisse quentinho por dentro. Mal contive o sorriso.
一 Claro que pode 一 Respondi. 一 , desde que haja alguma conversa.
Ele sorriu e os assuntos fluíram entre nós como água escapando de uma represa recém-rompida.
🌙 ✲ 🌙
A caminhada até a minha casa foi bem tranquila. Will me olhava de um jeito diferente apesar do sorriso brincalhão. Durante o trajeto, falei sobre meus pais e o quanto eu os admirava. Falei sobre os meus amigos e como éramos maravilhosos como um grupo. Quando recordava-me de algo ruim, guardava a lembrança pra mim. Não queria aborrecê-lo com tragédias.
Esforcei-me muito para manter a minha atenção na conversa, já que a sensação de sua mão entrelaçada contra a minha me tomava o foco. Eu queria que ele passasse o braço pelos meus ombros, mas as roupas de inverno faziam bem o trabalho de nos aquecer. Pela primeira vez, fiquei descontente com isso.
Conduzi-o pelas ruas e não demorou, pelo menos enquanto conversávamos, para chegarmos na frente da minha residência: Uma casa de paredes e cerca branca que contornavam seus limites territoriais. Não era nada Uau! Que lugar bacana! É só uma casa. É apenas onde moro e é o bastante.
Quando olhei para a porta, lembrei de minha mãe descendo os degraus o mais rápido que conseguia, vindo até mim. Lembro dela ter me segurado pelos ombros e de Marie ter feito a mesma coisa anos depois, ambas verificando se eu estava bem. Duas situações diferentes, mesma ação e reação.
Desperto do transe que a lembrança me proporcionou e aperto os dedos de Will nos meus. Comprimo os lábios em uma linha fina, pensando em quanto tempo demoraria para Hazel sair da casa e vir me recepcionar. Ela sempre fora gentil nesse ponto. Me virei para Will:
一 Obrigado por me trazer. 一 Meus olhos vagaram por seu rosto. 一 E pelo lanche. 一 Sorri.
Ele retribuiu, mas seu olhar permaneceu intenso e preocupado.
一 Se cuide. 一 Sussurrei.
Deu meia volta e fui embora.
Ouvi meus passos ecoarem pela calçada antes que pudesse executá-los. Ouvi o barulho seco do trinco antes mesmo de abrir a porta. Ouvi a voz plena de Hazel antes de vê-la. Senti os braços dela ao meu redor muito antes de abraçá-la. Senti o carinho de Maria sem vê-la. Senti o cheiro de limpeza antes de pisar o pé em casa.
Então uma mão agarra meu cotovelo e me puxa para trás. No instante seguinte estou de frente para Will. Ele solta meu cotovelo e passa a mão pelas minhas costas, colando meu corpo ao seu. Meu coração dispara, meu rosto esquenta e minhas pernas tremem.
Seus olhos encontram os meus, determinados e brilhantes exatamente como ele era.
一 Antes que vá. 一 Disse. 一 Minha mãe me ensinou a ser corajoso e verdadeiro comigo mesmo. E eu preciso fazer isso, ou me arrependerei muito.
Eu sentia meus batimentos cardíacos na garganta.
一 Então vá em frente. 一 Sussurrei.
Qualquer espaço que existia entre nós desapareceu. Seus lábios tocaram os meus e se pressionaram contra eles. Imediatamente fechei os olhos e passei as mãos pelos seus ombros, como seria de praxe. Will me manteve perto, nem precisava, pela nuca. Ele aprofundou o beijo, nossas bocas se confundindo em uma só.
Foi fácil retribuir o ato dele, mesmo não esperando por aquilo. Meu primeiro pensamento foi Oh! e o segundo foi É assim que eu tenho que fazer? O terceiro: Acho que peguei o jeito. E o quarto foi tipo O que eu tô fazendo da minha vida? Eu não conseguia acreditar que estava beijando alguém, muito menos Will. Até aquela manhã, Will era a pessoa que eu menos aguardava mandar uma mensagem.
Então o beijo acabou. Sua boca deixou a minha. Suas mãos deslizaram do meu corpo e ficaram paradas ao lado do dele. O soltei devagar e me esforcei para recuperar o fôlego. Ele passou o polegar pelo minha bochecha e desejei poder beijá-lo de novo. Pus minha mão sobre a dele.
一 Bem... 一 Encarei-o por um instante. 一 Agora sim é um tchau.
Ele sorriu e eu me afastei, olhando-o fixamente na esperança de guardar cada detalhe para lembrá-lo mas tarde. Depois me virei e entrei em casa sem olhar mais para trás, apenas sentindo seu olhar em minhas costas e o coração batendo, prestes a sair do peito.
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