Will dirigia pelas ruas incrivelmente limpas de sua cidade natal, tenso como um vulcão prestes a entrar em erupção. Mas de longe não tão tenso quanto a pessoa ao seu lado. Na verdade, Nico estava muito calmo sabendo o que viria a seguir. Desde a briga com Lídia, no dia anterior, sentia todo o peso do que vinha carregando por anos pesando mais que o normal, como se quisesse se libertar.
Agora que estavam voltando para casa, tinham que fazer aquilo primeiro. O ômega sabia que só teria essa oportunidade dali há alguns anos e não podia segurar tudo por mais esse tempo. Precisava colocar tudo para fora e resolver todas as questões pendentes naquele dia. Naquele momento, de preferência.
A viagem até chegarem durou mais ou menos duas horas. Duas horas de puro silêncio. Nico não sabia dizer se seu namorado estava respeitando seu espaço ou se estava pesaroso pelo que aconteceu, mesmo tendo o desculpado por algo que não tinha causado. Pensou em conversar com ele, mas já estavam chegando à rua.
Foi quando avistaram a casa. Toda pintada de cinza-claro. O telhado era negro como o vestido de formatura de Bianca. O canteiro só possuía rosas-chá, as favoritas de Maria, e estava um pouco mal cuidado. A porta era de uma madeira também bastante escura, porém marrom, como os olhos que tinha herdado da mãe. Essa era a propriedade dos Di Angelo. Sempre tinha sido e sempre seria.
Will estacionou perto da pequena portinhola do jardim da frente e desceu. O moreno fez o mesmo, abrindo o trinco quebrado e indo até a porta escura. Hesitou antes de bater, as memórias de quando sua mãe cruzava o jardim da frente para mandá-los voltar para dentro depois de brincarem no quintal. Ela nunca usava a porta dos fundos, como se isso fosse ruim ou trouxesse azar. Não sabia ao certo por quê.
Ao seu lado, o alfa segurou sua mão, tentando lhe encorajar, mas parecia muito cansado para sorrir ou dizer alguma coisa. Por um instante, Nico se sentiu mal por tê-lo arrastado até ali, porém, lembrou-se dos motivos para terem feito um desvio no percurso e isso renovou sua raiva, fazendo-o tomar coragem e bater.
Com um rangido enferrujado, a porta se abriu e Hades se revelou detrás dela. Seus cabelos negros continuavam da mesma maneira da qual se lembrava e os olhos, tão severos quanto. Sua voz ao telefone não devia ser tão diferente pessoalmente, presumia. O homem passou os olhos por si, inexpressíveis, e os demorou mais analisando Will.
Os três ficaram parados ali e o ômega desejou ter dito alguma coisa, mas não sabia o que dizer. O loiro encarou seu pai com morbidade, não quebrando o contato visual estabelecido, como se estivessem discutindo. Enfim, o homem desistiu e, com um suspiro, desviou os olhos escuros dele.
Se virou e deu um passo adentro, indicando que entrasse. Mas, ao darem um passo, ele ressoou:
一 Apenas Nico.
E os olhou por cima do ombro, desdenhoso.
一 O que vamos conversar não lhe diz respeito, garoto.
Will fez que ia protestar, mas o impediu, sorrindo com receio e doçura. Se inclinou para beijar-lhe o rosto e sussurrou em seu ouvido que o esperasse, alegando que logo, logo voltaria e que tudo estava bem. Largou a mão dele, esperou enquanto o pai fechava a porta e o seguiu, temeroso, para dentro do lugar que já tinha sido seu lar.
🌙 ✲ 🌙
Tudo parecia igual: Os móveis de madeira escura bem trabalhada; a maneira como estava organizada; a pintura das paredes; os quadros pendurados, as fotografias dispostas sobre os móveis, as cortinas também escuras sobre as janelas e os tapetes cobrindo o chão. Exceto por uma coisa. Duas, na verdade. Faltava vida ali. Faltava alegria. Mais especificamente, faltava a presença de Maria e Bianca pelos corredores.
Era como se o espírito leve da casa tivesse ido embora. Como se todo o calor e a sensação de família tivesse se dissipado.
一 Sente-se. 一 Exigiu seu genitor, ríspido.
Evitou bufar e apenas obedeceu. Tinham muito a que discutir e com certeza, não só pelo humor do homem, não sucederia pacificamente. Os assuntos a serem resolvidos não eram pacíficos, tão pouco a abordagem deles. Suspirou, passando os dedos pelo estofado cinzento. Esperava que ele começasse, mas nada foi dito.
Observou-o. Ele lhe estudava com muita atenção, como se lesse tudo o que tivesse passado. Teve pavor que visse o quanto tinha sofrido por causa da morte de sua mãe e que visse o quanto ainda estava doído pela morte de Bia. Teve medo de que ele visse o quanto estava apaixonado por Will. Mas ele apenas indicou a mesa de centro com a cabeça.
Desconfiado, pegou o copo de vidro já servido com um líquido escuro e cheirou, receoso.
一 Coca? 一 Ergue-lhe uma sobrancelha.
Hades não reagiu.
一 Poderia ser diferente?
一 O senhor nunca gostou de Coca-Cola,
一 Sua mãe gosta.
一 Ela gostava. 一 Corrigiu enfático.
Seu pai nada disse, apenas fez uma expressão desgostosa. Ele claramente não aceitara bem a notícia, mas parecia... algo mais. Quase como se tivesse envolvimento nela. Se essa fosse a verdade, não duvidava. Era bem capaz que ele tenha feito algo que, diretamente ou não, tenha gerado o ataque cardíaco.
Hades desviou o olhar, constrangido. Não parecia saber como abordar o que queria dizer.
一 Aquele garoto...
一 Alfa. 一 Corrigiu outra vez. 一 Se não consegue tratá-lo como um homem que ele é, refira-se a ele pelo gênero secundário pelo menos. 一 Atacou, ácido.
Um olhar reprimido e cheio de rancor lhe foi lançado em resposta. Obviamente não estava gostando de ser corrigido de maneira tão dura.
一 Aquele alfa... 一 Enfatizou, levemente incomodado, 一 ...é seu namorado?
Olhou-o por cima do copo que segurava. Um olhar gelado que transmitia toda a morbidez que queria naquele momento.
一 Te interessa?
Hades inspirou.
一 Foi apenas uma pergunta.
一 De uma parte da minha vida que você nunca teve interesse em saber. 一 Rebateu.
Seu genitor pareceu sem jeito com o que disse, mas eram apenas verdades, no fim das contas. Percebeu, a contragosto, que a conversa não iria para frente se não chegassem no ponto que queriam. E logo. Não queria demorar para chegar em casa e precisava saber o por quê de seu pai ter ligado.
Pousou o copo intocado na mesinha de centro outra vez, apoiando os cotovelos nos joelhos e esfregando as mãos. Ajeitou os fios negros que batiam nos olhos e o encarou, esperando.
一 O que quer? 一 Perguntou, rude. 一 Não teve o trabalho de descobrir o número de Will apenas para ficar de papo furado comigo, não é?
Hades suspirou, recostando no sofá a sua frente.
一 Te chamei para falar de sua mãe. 一 Esclareceu com um tom cansado. 一 Mas vejo que está impaciente hoje.
一 Por que será, não é mesmo?
一 Nico...
一 O que? 一 Zombou. 一 Vai me mandar embora se eu me alterar?
一 Não. Eu só...
一 Quis conversar? Acho que isso já durou o suficiente.
E se levantou.
一 Nico, me escute! 一 Exigiu, aumentando o tom. 一 Te chamei para conversamos sobre Maria e Bianca, mas se ficar com essa ceninha, terei que te mandar embora mesmo.
O ômega sorriu, desdenhoso.
一 Muita a autoridade o senhor tem. 一 Zombou, ainda sorrindo. 一 Vai fazer o mesmo que há doze anos. Muito legal de sua parte.
Seu pai se levantou do sofá em que estava.
一 Não sei como interpreta o que aconteceu. 一 Disse cansado. 一 Mas eu não...
一 Você me expulsou! Foi isso o que você fez!
一 Não aumente o tom para falar comigo!
一 Então o que eu devo fazer? Ein?!? Abaixar a cabeça e aceitar qualquer merda que vier de você? Isso eu não faço mesmo. Fique aí com essas suas mentiras!
Hades trincou os dentes, mais do que irritado, mas se controlou. Passou as mãos pelos cabelos como se isso fosse fazer ele manter a calma. Sentou-se novamente e coçou os olhos. Realmente parecia disposto a ter uma conversa, mas não sobre a emancipação e tudo o que veio antes dela.
一 Se você se sentar, responderei tudo o que me perguntar e ouvirei tudo o que tiver que dizer. 一 Prometeu. 一 Mas terá que ouvir o que eu também quero falar.
Nico o analisou com a mesma dor no olhar e a mesma frustração que sentiu há doze anos, quando tinha apenas 14 sem saber o que fazer. Longe da mãe que o ensinaria como se cuidar e se portar sendo um ômega, longe da irmã que o apoiaria nos momentos difíceis e longe da casa que um dia chamou de lar. Como podia ser tão idiota vindo ali de novo? E mais ainda concordando com os termos dele.
Sentou-se de novo, a contragosto.
一 Por que me expulsou? 一 Foi a primeira coisa que quis saber.
Hades suspirou, parecendo desconfortável.
一 A minha situação financeira naquela época não era a das melhores. 一 Admitiu ele, pouco orgulhoso dessa parte em específico. 一 Ninguém queria contratar meus serviços, Nico. Precisei cortar gastos, mas não foi o suficiente.
O menor ficou olhando para ele, indiferente, tentando entender aonde ele queria chegar com tudo aquilo, mas não foi necessário esperar muito para que ele prosseguisse.
一 As opções não eram nada boas. Tive que fazer a escolha impossível ou perderíamos a vida boa que tínhamos.
一 E essa escolha foi me expulsar?
Ele pigarreou.
一 Não exatamente. 一 Disse por fim. 一 Eu realmente precisei expulsar alguém de casa, mas amava muito sua mãe para me divorciar dela.
Nico assentiu. Sabia daquilo.
一 Pensei inicialmente em sua irmã.
O mais novo não sabia o que sentir e nem o que pensar sobre isso. Não devia ficar feliz por não ser a primeira alternativa, nunca ficaria feliz com isso. Entretanto, queria entender o que tinha levado seu pai a definir que seria ele o deserdado. Seu pai suspirou, pouco orgulhoso de si mesmo. Nunca o vira tão abatido. Devia ser pela morte de Maria e Bia, no fim das contas, e não por ter se dado conta do feito absurdo que conseguiu.
一 Juro que eu não quis fazer isso, mas eu não avistei outra saída. 一 Admitiu. 一 Pensei em como ela se manteria, com quem falaria, o que faria. Ela era minha primeira opção por estar quase se formando. Mas... Você entrou na lista.
Hades esfregou as mãos no estofado, subitamente inconfortável.
一 Pensei em como se manteria, para quem pediria ajuda, para onde iria, o que poderia lhe acontecer. E... 一 Ele suspirou. 一 As possibilidades eram melhores e menos preocupantes que as de Bianca.
Lágrimas surgiram nos olhos de Nico. Pensar em sua irmã depois dela ter morrido era difícil, ainda mais em uma situação que se passou que foi muito traumática. Agora sabia que o plano inicial de seu pai era despejar a ela e não ele. Isso apenas foi cogitado quando as chances de conseguir viver bem depois daquilo eram maiores para ele do que para ela.
Desejou fervorosamente que Will estivesse ali, segurando sua mão como havia feito quando as perguntas invasivas e insistentes de Lídia o perturbavam, mas ele não estava. E, sendo franco consigo mesmo, sabia que tinha que lidar com aquilo sozinho. Apenas ele sabia o quanto doía e apenas ele poderia se livrar do peso que seus traumas causam.
一 Foi assim que tomou sua decisão?
一 Sim...
Silêncio. O ômega reprimiu um soluço.
一 Olha. Eu não tive outra escolha. Sei que isso o marcou de uma forma irreversível e não me orgulho disso. Apenas... Não sei como cheguei a esse ponto, mas não pude evitar.
Nico percebeu que seu pai tentava falar alguma coisa, mas simplesmente não saía, como se sua boca e suas cordas vocais se recusassem completar o ato. Sorriu dolorosamente ao adivinhar o que era. Deixou-o falar e falar, até que se irritou consigo mesmo.
一 Por que é tão difícil pedir desculpas? 一 Exclamou ele.
Di Angelo riu ao ver a falta de jeito do patriarca da família, ou do que restara dela. Nunca tinha o visto tão constrangido e transtornado. Era algo novo, incomum e, admitia, muito engraçado de se presenciar. Não era uma coisa que se podia apreciar todo dia, mas estava valendo a pena ter vindo só por aquela reação.
一 Somos parte do legado dos Di Angelo. 一 Brincou, bem-humorado. 一 Sempre foi difícil para nós pedir o perdão de alguém.
一 Sua mãe não era assim. 一 Hades lamentou.
一 Bia também não. 一 Os olhos do menino marejaram outra vez, mas ele manteve o sorriso. 一 Elas eram apenas exceções. Almas boas demais para herdarem o rancor da família.
O homem concordou, sem a mesma empolgação.
一 Mais alguma pergunta?
一 Por que proibiu mamãe e Bia de me ajudarem e de me visitarem?
一 Não queria que elas o levassem para uma delegacia e fizessem uma denúncia contra mim. 一 Disse ele, dando de ombros. 一 Tive esse medo no início, então não as deixei se aproximarem de onde você estava até conseguirmos a emancipação.
一 Você sabia aonde eu estava? 一 Perguntou, surpreso.
Ele assentiu.
一 Bia me contou que Jason o aceitou sob seu teto. Agradeça a ele por mim.
Concordou, um pouco atordoado. Seu pai se preocupara com sua segurança, no fim das contas. Não era um completo idiota.
一 Por que me humilhou daquele jeito?
Ele lhe fitou, confuso.
一 A respeito de que?
一 Sobre o alfa que eu gostei na época do colégio.
一 Oh! 一 A compreensão chegou ao seu rosto. 一 Bryce, certo? Achei-o um tanto arrogante. Não era uma boa pessoa.
一 Foi por isso que contou pra ele? Para afastá-lo de mim?
Ele concordou com a cabeça, sem dizer mais nada.
一 Mas e se ele se aproximasse de mim? E se ele se interessasse por mim?
Hades franziu o cenho, pensando a respeito.
一 Não acho difícil, mas eu arrumaria um jeito de despachá-lo. Você sempre mereceu coisa melhor, Nico. E começo a pensar que encontrou.
Corar foi inevitável. Nunca, em tantos anos, pensou que algo de bom motivaria as escolhas de seu pai, mas ali estava ele, contando tudo e respondendo todas as suas inseguranças de anos. Aquele era seu pai, dizendo que manteve um sujeito que teve uma paixonite afastado por merecer coisa melhor. Era um sonho?
一 Mais alguma pergunta?
一 Não. 一 Respondeu, ainda desacreditado ou começando a acreditar. 一 Acho que mais nada.
Hades suspirou e esfregou as mãos no rosto.
一 Posso começar?
一 Espera. Tenho mais duas, sim.
Ele fez um sinal com as mãos para que prosseguisse.
一 Por que o senhor foi tão duro conosco na infância?
一 Conosco?
一 Comigo e com a Bia.
Hades hesitou.
一 Confesso que isso foi culpa minha. Eu nunca me senti alguém perto de meus irmãos. E quando eu me apaixonei por Maria... Foi sem igual. Casamos e tivemos filhos juntos. Céus, essa foi a parte difícil. Eu nunca tive paciência e meu exemplo de pai não é dos melhores.
一 Culpa vovô Cronos por isso?
一 Em partes minúsculas. 一 Assentiu. 一 Mas sei que a responsabilidade maior é minha.
O silêncio se instalou no lugar por um tempo enquanto Nico digeria o que tinha acabado de escutar. Um peso imensurável caiu de suas costas, fazendo-o se sentir aliviado como nunca. Não era culpa dele e nem era culpa de Hades. Lembrou-se de uma frase que Jason comentou certa vez; "Pessoas machucam pessoas que machucam outras pessoas. É um ciclo infindável que continua independentemente do que façamos.".
一 E... a outra pergunta? 一 Hades quebrou o silêncio.
一 Certo. 一 Limpou a garganta. 一 Por que não compareceu no enterro da mamãe e nem no de Bia?
Ele suspirou.
一 Questões sentimentais. 一 Esclareceu. 一 Já era doloroso o suficiente saber que tinham morrido. Ver isso... Era doloroso demais pra mim. É mais do que eu sou capaz de suportar.
Nico suspirou, aliviado. Não era paranoia da sua cabeça e nem falta de consideração dele, afinal. Poderia ter ido para casa com aquele alívio na consciência, mas seu pai ainda queria falar e parecia nervoso, então forçou-se a esperar mais um tempinho até que ele se desse conta de que poderia prosseguir.
一 Posso começar?
O ômega assentiu.
一 Vai em frente. 一 Enfatizou, esperando.
Seu genitor suspirou. A agonia em seu rosto foi indescritível. Era como se ele precisasse colocar tudo para fora agora. Hades passou a mão pelos fios negros, os olhos igualmente escuros entristecidos pelo pesar. Havia mais sentimento neles do que Nico pôde compreender, mas tentou imaginar como se sentia.
Parecendo sem jeito, de um modo ruim, ele começou:
一 Sempre amei Maria, mas... Sabe o ataque cardíaco dela?
一 Sei...
一 Então. Eu... Ela... Eu...
E ficou nessa de "eu" e "ela" durante uns 30 segundos. Como se não bastasse apenas não conseguir falar direito, o jeito como gesticulava as mãos, na esperança de transmitir parte da história com elas, o irritava.
一 Porra, pai! Tá engasgado, é? Diz de uma vez!
Isso pareceu funcionar, pois ele gritou:
一 Eu traí sua mãe!
E levou a mão a boca. Por um instante, Nico se perguntou se estava alucinando ou se aquela conversa toda era real e, por mais um segundo, pensou: "Será que eu ouvi direito?". O ômega mal respirou, repassando a frase na cabeça. Não parecia real. Não podia ser real.
一 Você... Você o que?!?
Hades suspirou pesadamente, passando a mão pelos cabelos com tanta força que poderia arrancá-los do couro cabeludo. O menor não duvidou que pudesse fazer isso. Seu pai era capaz de decidir lucidamente qual dos filhos expulsaria de casa, poderia muito bem arrancar o próprio cabelo.
一 Eu traí sua mãe. 一 Repetiu, desolado. 一 Se puder me escutar sem me julgar, explico tudo. Tudinho.
Nico meneou com a cabeça, receoso. Tinha discutido com Lídia no dia anterior e ela usara traição como justificativa para fazer o maior escândalo simplesmente porque não tinha gostado dele e tinha insinuado que ele e Will haviam feito coisas no quarto. Agora seu pai confessava que tinha traído sua mãe? Aquela história estava tendo muita traição pro seu gosto.
一 Quando Maria descobriu que estava grávida de você, estávamos com alguns problemas em relação a creche para Bianca, que tinha quatro anos naquela época. Não estávamos nos falando direito e as condições não eram boas.
一 Uhum. Tô ouvindo.
一 Eu pedi que ela te abortasse, isso quando tinha um mês e meio ou dois, mas ela se recusou e ficou com muita raiva de mim. Passou a dormir no quarto de sua irmã, apenas para não ter que compartilhar cama comigo.
一 Compreensível dadas as circunstâncias.
一 Eu sei. 一 Suspirou. 一 Maria ficou brava comigo durante um bom tempo. Então você veio à este mundo. Ela ficou tão feliz, tão realizada. Deu-lhe o nome que tem e cuidou de tudo para que Bia não estranhasse a nova criança sob o mesmo teto.
一 Dá pra imaginar.
一 Foi quando a traí. 一 Seus olhos ficaram carregados de pesar. 一 Foi logo depois que eu tive a notícia do hospital que você nasceu. Eu a traí com uma mulher chamada Marie, amiga e aprendiz de Hécate. Lembra-se dela?
一 Lembro. 一 Murmurou, recordando-se dos tapetes em tom de vinho e os artigos de magia pela loja. 一 Sombria, religiosa. Tachada como bruxa.
一 Exato. Marie e Hécate estudavam magia antiga juntas. Marie era uma auxiliar na loja também. Atendia a clientela, fazia talismãs, previa o futuro, lia as cartas de tarot. Foi ela quem teve a iniciativa e acabei caindo em seus encantos.
一 Certo, certo. Você traiu mamãe. Sente-se culpado. É isso?
一 Não apenas isso. 一 Disse, apertando os lábios.
一 Ah, deuses! 一 Nico recostou-se no sofá, sentindo o estômago revirar. 一 Continue logo, antes que eu vomite.
Hades suspirou.
一 Pouco antes de sua mãe morrer, Marie me procurou e me apresentou Hazel.
一 Hazel?
一 Pediu que eu fizesse alguns testes com a menina, testes de DNA, e...
一 E o que? 一 Ergueu-lhe uma sobrancelha.
一 Deram positivo. Eu sou o pai de Hazel Levesque. Marie engravidou pouco depois do seu nascimento e, nove meses depois, Hazel veio à este mundo também.
一 Merda...
Não o levem a mal. Não é "merda" no sentido de "Mas que desgraça". Tá mais pra "merda" no sentido de "Porra! Agora eu tenho uma irmã?". Se você, caro leitor, recebesse uma notícia como essa, de que jeito você reagiria? Pois bem. Então dê um desconto!
一 O que minha mãe tem a ver com isso?
一 Ela... Viu a certidão de nascimento e os resultados dos testes de DNA.
一 Porra...
Nico se endireitou no sofá e entrelaçou as mãos frias em frente a boca, tentando escondê-la.
一 Vamos ver se eu entendi. 一 Começou, meio atordoado com a nova informação. 一 Você traiu a mamãe?
一 Sim... 一 Respondeu, pouco a vontade com a afirmação.
一 Sua amante engravidou?
一 Uhum.
一 Tenho uma irmã mais ou menos da minha idade?
一 Tem...
一 E você nunca resolveu me contar isso antes?!?
Hades parece desconcertado.
一 Devo te lembrar que até uma hora atrás você estava ressentido comigo e me colocaria no inferno sem hesitar? Como eu iria te contar sobre Hazel se você me odiava e suspeito que ainda me odeie.
Nico sentiu as orelhas ficarem vermelhas de vergonha.
一 Não te odeio. 一 Disse. 一 Quer dizer, não mais. Mas todas as suas atitudes e posturas ao longo dos anos me fizeram acreditar que não se importava.
一 Mas eu me importo.
一 Percebo isso agora, depois de doze anos.
Seu genitor assentiu.
一 Sabe ao menos quanta dor me causou? Eu tinha esperanças de que você me apoiasse quando descobrimos o meu segundo gênero, mas você me olhou com desprezo. Não me deu atenção e, não muito depois, me expulsou.
一 Sinto muito por isso, Nico. 一 Ele fungou. 一 Deveria ter sido um pai melhor e, se me conceder a oportunidade, serei.
一 Está pedindo o meu perdão?
一 Estou.
Nico suspirou e ponderou por um momento. Hades havia sido sincero consigo desde que entrara. Dissolveu seu humor ácido do início e lhe contara coisas de que se arrependia, pedindo para não ser julgado. Não podia fazer com ele o que temia que fizessem consigo. Não podia dar as costas para ele. Não conseguia fazer isso.
一 OK. 一 Disse por fim. 一 Eu te perdoo.
一 Por tudo?
一 Por tudo. 一 Confirmou.
O silêncio se instalou no cômodo.
一 Creio que encerramos essa conversa.
一 Creio que sim. 一 Hades assentiu.
O ômega se levantou e o pai o acompanhou. Levou-o até a porta. Encararam-se por longos instantes, sem saber o que dizer. Já tinham discutido tudo, afinal. Nico murmurou um "tchau" tímido e foi andando até Will. Vê-lo outra vez fez seu coração bater mais rápido e mais forte. Seus olhos azuis-claros estavam cheios de preocupação, mas o tranquilizou com um sorriso. O mais aliviado em anos.
Solace pegou sua mão e a levou aos lábios, beijando o dorso. Ia dizer algumas frases de conforto ou algo que derive disso, mas o olhar dele recaiu sobre uma figura atrás de si. Olhou por sobre o ombro e Hades continuava ali. Deu alguns passos para o lado e analisou a postura dos dois alfas enquanto eles se encaravam.
一 Sr. Di Angelo. 一 Will estendeu a mão. 一 Meu nome é Will Sol...
Em uma atitude inesperada, seu pai o pegou pela mão e abraçou seu namorado. Deu para perceber no rosto de Andrew que ele não esperava por isso. Provavelmente um soco, mas nunca um abraço tão espontâneo. E ficou ainda mais surpreso quando Hades pareceu sussurrar algo em seu ouvido.
Se separaram do abraço devagar e o pai de Nico apertou a mão do garoto, sorrindo como se aquilo fosse a melhor coisa da vida dele.
一 Bianca nunca trouxe Thalia aqui, mesmo depois de terem noivado. 一 Ele disse, revelando o motivo de tamanha alegria. E olhou para Nico. 一 Obrigado. Desejo muitas felicidades para vocês.
一 Eu que agradeço, sr Di Angelo. 一 Murmurou Will, atordoado.
一 Hades. 一 Corrigiu. 一 Me chame apenas de Hades.
一 Sim, senhor.
O homem franziu o cenho e Nico se esforçou para não rir.
一 E tire o "senhor".
一 Como preferir.
Ele assentiu e se voltou para o menor. Tirou um pequeno papel do bolso e o estendeu para o filho.
一 Hazel quer muito te conhecer. 一 Esclareceu. 一 Pediu para que eu te desse isso.
Nico abriu o papel, vendo a caligrafia perfeita que devia ser da menina.
一 Este é o telefone dela? 一 Perguntou, virando o bilhete na esperança de encontrar mais algum recado nele.
一 Sim, é.
O ômega dobrou-o novamente e guardou no bolso dos jeans. Assentiu para o pai e murmurou um "obrigado". Esperava que seu pai fosse assentir de volta e se afastar, mas ele também o abraçou. O apertou com tanta força que teve medo de quebrar uma costela. Ignorou a dor e focou no fato de seu progenitor não querer lhe largar.
Demorou mais alguns minutinhos de silêncio para que isso acontecesse e ele finalmente o soltar. Despediram-se rapidamente e entrou no carro com Will no banco do passageiro. Em pouco tempo, a casa e Hades foi ficando para trás até não poder ser mais visto. A conversa ainda ecoava na cabeça de Di Angelo, fazendo repassá-la várias e várias vezes.
Will pareceu preocupado com seu silêncio, mas não disse nada. Parecia ainda se culpar pela discussão e o escândalo de Lídia, mesmo perdoando algo que ele não tinha causado. Pegou a mão livre e entrelaçou seus dedos com os dele. O loiro apenas o olhou de soslaio, mas, no primeiro sinal vermelho, perguntou:
一 Está tudo bem com você? Estou preocupado.
Nico sorriu e deu um selinho no alfa, que ficou surpreso. Não tinham se beijado e nem se falado direito desde a briga. Mesmo não admitindo, Will não se sentia mais digno da afeição do moreno se tinha o arrastado para uma situação desagradável como aquela que só lhes trouxe dor de cabeça. E Nico sabia disso.
一 Will, eu vou repetir pela milésima vez. Não é culpa sua. 一 Enfatizou, suas mãos ainda no rosto dele. 一 Eu não te culpo pela falta de senso de Lídia e nunca te culparia por isso. Eu te amo, William Andrew Solace. Entenda de uma vez. Se tem uma pessoa que não merece alguma coisa, sou eu em relação a você. Então pare de se martirizar e vamos pra casa.
O loiro ficou encarando a face angelical do ômega por alguns instantes e depois concordou. Também amava Nico, com todas as suas forças, e não deixaria forças exteriores arruinarem essa ligação preciosa que ambos tem. O sinal ficou verde e não demorou mais de uma hora para eles chegarem em casa.
C O N T I N U A
Comentários
Postar um comentário