Os sons que tu não ouves -- Inconveniências embaraçosas (Chapter One)

 




 Rafael recordava de poucas coisas de sua infância, mas uma dessas coisas eram as perguntas inconvenientes. Principalmente as que tinham as respostas mais embaraçosas de serem dadas por sua mãe ou por sua irmã. Recorda-se de fazer tais perguntas especialmente na presença daquilo ou de quem lhe causou a curiosidade, gerando muito desconforto tanto para seus pais quanto para o indivíduo.

 Obviamente, não tinha orgulho disso. Sua infância, apesar de boa, causa-lhe muita vergonha quando esses incômodos são citados, não importa onde e não importa quando citados, nem por quem. Nathan, um de seus amigos, comentou de um passeio que fizeram na pré-escola. Na ocasião, perguntara a professora como alguém poderia se parecer tanto com um dos animais do zoológico. O animal que visitavam na hora era um golfinho.

 A jovem ao qual Rafael apontara havia rido de uma piada de seus amigos, o som parecendo muito com o que tinha ouvido o golfinho fazer. A garota ouviu, não só ela, e foi motivo de chacota no grupo dela durante todo o passeio. Em sua defesa, era muito pequeno para compreender e filtrar o que dizia.

 Mesmo depois de tantos anos, a pequena menção à "golfinho" ou "risada esquisita" o deixava inteiramente incomodado. Sentia-se muito culpado por causa disso e de todos os outros transtornos e situações embaraçosas pelas quais fizera pessoas desconhecidas e conhecidas passar.

 Neste momento, Rafael olha o horizonte, admirando o pôr-do-sol com o "olhar de mil metros", como é chamado. Os cabelos castanhos, cor de chocolate ao leite, balançando ao vento. Esvoaçando no seu rosto e sumindo brevemente de sua visão periférica como uma bandeira dando um perdido em seu mastro.

 Os olhos refletiam o laranja do céu, mas seu tom ainda era meio acinzentado. A pele levemente mais escura, como café ao leite, se destacava pela escolha nada discreta de suas roupas. Camisa cinza como seus olhos e calça moletom branca. Não eram roupas muito adequadas e nem muito estilosas para se ir ao porto, mas ele pouco se importava.

 Observava o sol desaparecer, trazendo consigo as estrelas. Percebeu, com uma pequena alegria no peito, que sempre parecia que o dia e a noite brincavam de pique-esconde, ou que o dia arrastava a noite para qualquer lugar junto de si, percorrendo juntos cada pedaço da terra nessa caminhada sem fim.

 Isso lembrava-o dos pais de seu melhor amigo: Nathan DiAngelo-Solace. Ele tinha cabelos negros e incríveis olhos azuis. Parecia um profeta, visto que tudo o que ele falava acontecia. Exemplos? Logo, meus caros. Logo...


一 Qualquer hora você caí daí. 一 Disse o tal com a voz costumeiramente entediada. 一 Cê tá bem?


 Rafael olhou-o apenas por um instante, voltando os olhos para o mar.


一 Bate na madeira. 一 Respondeu o amigo no mesmo tom. 一 Estou...


一 Não parece. Olhando pro mar desse jeito...


 Não discutiu. Nathan tinha razão afinal. O mar apenas o lembrava dos olhos azul-esverdeados que tanto gosta de admirar. Era um lembrete de que o mar era infinito e eternamente indomável. Inexplorável. Impossível de se ver por completo e de que somos incapazes de contemplar seu todo porque, simplesmente, não há como vê-lo.

 Profundo, não? Pois bem. Rafael perde muito tempo estando nas nuvens. Pela manhã, focava nas coisas que precisavam de sua atenção imediata e, pela noite, escrevia poesias, canções e pensava nas mais diversas coisas. Sua mãe, Annabeth, balançava a cabeça, em negação, quando citava uma de suas reflexões na hora do jantar.

 Ao perceber que sua filosofia não era muito bem-vinda e até mal interpretada, passou a guardar para si a maioria dos frutos de sua mente. Escrevia cartas endereçadas à pessoas específicas, mas nunca enviava. Eram apenas desabafos do que os tais indivíduos o faziam sentir. Escrevia poemas, que eram as únicas coisas que publicava. Entretanto, não divulgava sua conta à ninguém.

 Quanto à Nathan? Era um compositor mais ávido do que Rafael jamais poderia ser. Ele costumava compor melodias com o violão, em casa. Mas, depois de um incidente do qual não quer revelar nem sob ameaça de morte, passou a fazer isso na sala do clube de música da escola. Acabaram chamando seus pais após ouvirem ele gritar de pura angustia. O colégio inteiro ouvir não fazia parte dos planos.

 Foi ao psicólogo, porém não houve resultados. Ele não queria contar o que tanto o afligia. Não abriu a boca nem para suspirar. Seus pais, obviamente, ficaram preocupados, mas já tinham feito tudo o que podiam. Não queria invadir sua privacidade e fazê-lo se sentir pior do que já estava. 

 Sem que se dessem conta, a brisa fria do mar os atingia, fazendo-os tremer. As ondas estavam altas por causa da lua cheia, alcançando o lugar onde estavam sentados e molhando-os até a cintura. Se entreolharam, tendo a mesma ideia em mente. Nathan sorriu e desceu do murinho de pedra, aliviando o clima pesado que tinha ficado entre eles.


一 Vem. 一 Chamou ainda sorrindo e estendendo-lhe a mão como apoio. A temperatura subitamente subiu. 一 Não quer levar uma bronca tripla de uma hora por chegarmos tarde nesse frio, quer?


 Rafael ficou de pé, deu um passo na pedra lisa e deu uma pequena derrapada pro lado. Estava descalço, mas não era de todo um problema. Arrepios cobriam seu corpo, o frio das roupas molhadas grudadas à sua pele poderiam lhe congelar.

 Lembra que eu disse que Nathan é um profeta? Quando ia pegar na sua mão pra descer, escorregou e caiu. Seus joelhos dobraram de repente e despencou na água.




✉  ✲  




一 O que é que vocês estavam pensando? Um mergulho? À essa hora? Ficaram loucos?


 Piper, a "pai" de Rafael, gritava para os dois. completamente alterada.


一 Não estávamos mergulhando, tia. Ele caiu e...


一 Ótimo. Era só o que me faltava!


 Annabeth olhava a situação, séria. Não estava como Nico, que segurava o riso contra a mão, observando a uma distância segura enquanto Will, seu marido, verificava ali na rua mesmo se Rafael estava bem. Claro! Por que não estaria? Tinha apenas caído no mar noturno. Gelado pra casete, mas claro que estava bem. Sua tremedeira violenta era apenas um pouco de frio. Nada com o que se preocupar. (Ironia existe! Por favor, mano...)

 O loiro bronzeado balançou devagar a cabeça para Piper e entregou-lhe o termômetro. Seus olhos se arregalaram. O garoto arfava, com dificuldade respiratória, e não parecia sentir nem um beliscão. Will tinha testado isso. Annie franziu as sobrancelhas, confusa. Ao entregar o termômetro e olhá-lo por dois segundos, suas mãos tremeram.


一 A gente precisa levá-lo ao hospital! 一 Disse desesperada aos outros dois. 一 Ele não pode ficar aqui assim.


一 Annie... 一 Pronunciou Will, calmo como nunca, mas terrivelmente sério. 一 Tá tudo bem. Só precisaremos de toalhas quentes, água morna e bebid...


一 Não tá tudo bem. Meu filho tá com hipotermia!


 Pipes entrou na conversa enquanto Nico conduziu a dupla para dentro. Se Rafael ficasse ali fora, iria ser pior e aí sim precisariam levar o garoto para o pronto-socorro. O moreno era gentil. Pegou todos os cobertores que encontrou e o acomodou no sofá. Garantiu que estivesse bem envolvido pelas mantas e foi esquentar água e encher a banheira.

 Pouco depois, voltou com duas canecas de chocolate quente e avisou que logo poderia tomar banho, para se livrar das roupas frias que ainda vestia. Só não havia tirado porque não tinha outra coisa a qual vestir e as roupas não góticas de Nathan estavam lavando ainda.

 Esperou pacientemente por algum alívio definitivo enquanto as cobertas o aqueciam o suficiente para que alguns sentidos voltassem, visto que estava entorpecido pelo frio. Amaldiçoou o amigo em silêncio. Não gostava quando coisas parecidas, mas menos drásticas, aconteciam assim. 


一 Te odeio. 一 Sussurrou entre dentes enquanto tomava o chocolate.


 Nathan riu. Sabia exatamente do que se tratava.


一 Foi só um aviso, cara.


一 Mesmo assim.


 Isso só serviu para ele rir ainda mais.

 Não demorou mais muito tempo para Nico aparecer e dizer que o banho já estava pronto. O guiou calmamente até o banheiro. Um vapor estava espalhado por todo o cômodo. Ele lhe instruiu a não se jogar de uma vez, senão a diferença térmica lhe daria um grande choque e poderia até desmaiar, em casos mais extremos.

 Assentiu devagar, de costas para ele. A banheira parecia muito.., quente. Não se surpreendeu ao ver o quão ansioso estava para sentir todo o corpo normalmente. Rafael estava melhor, conseguia mexer os dedos dos pés, mas não estava 100%. Não comentou isso para não chatear o Di Angelo mais velho. Agradecia imensamente sua ajuda.

 Ele, depois de dar todas as instruções necessárias, fechou a porta e deixou-o sozinho. O garoto espremeu os fios castanhos nas palmas, se certificando de que a água fria que poderia haver neles não iria se misturar com a quente. Se despiu devagar e experimentou colocar um dedo ali. Sua pele formigou, quase como se estivesse com cãibra.

 Tirou-o da água e dobrou. Sentia a veia da mão pulsar com o movimento. Mais confiante, pôs o pé ali, entrando com o cuidado ao qual Nico havia instruído. Um arrepio passou por seu corpo, relaxando cada músculo gélido. Rafael se sentou, apoiando as costas machucadas, cair bruscamente na água machuca, no canto da banheira.

 Cada pedaço da sua pele começou a latejar. O alívio que estava esperando o percorrendo como água de um caindo de uma cachoeira. Fechou os olhos, apreciando a sensação. Agradeceu aos deuses por seu melhor amigo ter pais tão atenciosos. Não apenas por isso, mas também por não ter morrido.

 Imagina só ele chegando lá no céu.


"Do que morreres, senhor?", perguntaria um anjo.


"Caí no mar enquanto estava de noite."


 Riu com o próprio pensamento, deleitando-se com o fato de estar vivo. Abriu os olhos cinzentos, olhando para o teto.


一 Obrigado...




✉  ✲  




 Annabeth e Piper não deixaram passar. Lhe deram uma boa bronca, entretanto, parecia mais um aviso. Não o puseram de castigo, não anotaram essa enrascada no Caderno de Advertências (Longa história) e nem usaram o costumeiro tom irritado para repreendê-lo. Quase como se estivessem mais preocupadas do que qualquer coisa.

 Mikaella e Arthur olharam-o com inquietação. O pequeno estava agarrado a sua mantinha, mantinha essa com a qual dormia abraçado, hesitando em ir até ele. Rafael desejou-lhe boa noite e seguiu para seu quarto. Por fim, pareceu se decidir e abraçou suas pernas, esfregando o rostinho nelas. Começou a chorar.

 Precisou de Annie e muitos minutos para acalmá-lo. Arthur tinha apenas 2 anos, mas entendia mais coisas do que um adulto poderia imaginar. Isso incluía o fato de que seu irmão quase morrera. Mika foi cuidadosa ao explicar que o garoto não repetiria a dose e o pequenino dormiu.

 Rafael ficou extremamente aliviado ao trancar a porta e poder se jogar na cama. Se aconchegou nos seus lençóis e encarou o teto, suspirando. Manteve o olhar fixo nas sombras que a luz produzia ali, as silhuetas das árvores balançando diante de seus olhos. Ouvia o barulho silencioso do tecido das cortinas ricocheteando com a ventania.

 Por um momento, sentia o frio se alastrar pelo corpo, memórias de como estava há duas horas atrás. Recordava-se de sua visão turvada pela água que o envolvia. O frio jogou o ar para fora de seus pulmões, lhe causando desespero. Começou a se debater, mas não fora suficiente. Nathan precisou pular na água para o ajudar e o levou para cima do muro de pedra do qual havia escorregado.

 Mesmo com todas as piadas, sabia que não era culpa dele. Ele tinha avisado, tinha mesmo, mas não deu ouvidos e nem a atenção merecida à isso. Com toda a certeza, o agradeceria pela manhã. Ele merecia depois de ter passado meia hora explicando para suas mães que não havia sido sua culpa.

 Fechou os olhos outra vez. O ruído do tecido esvoaçando se tornou mais nítido. As folhas sendo esmagadas pelas pessoas que passavam na rua também era outra coisa que conseguia ouvir se prestasse atenção. O som quase lírico das copas das árvores seguindo a direção do vento, suas folhas sendo arrastadas por ele.

 Rafael pensou, triste, como seria se não pudesse ouvir nada disso. Não conseguir ouvir a voz dos próprios pais. Não conseguir ouvir o doce barulho de coisas fritando. Não conseguir distinguir o que as pessoas falavam ao seu redor. Devia ser terrível viver dessa maneira tão deprimente.

 Não quis continuar pensando nisso. Apenas relaxou, respirou fundo e adormeceu, esperando que o próximo dia fosse melhor e menos conturbado.

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