一 Tem certeza que está bem? 一 Brincou a voz feminina, empolgada. 一 Você deve estar tão cansado... Está até no mundo da lua!
Nico revirou o macarrão com o garfo, sem saber se ficava envergonhado ou se ignorava o comentário que a si havia sido dirigido. Seu peito doía tanto, ocupado com outros sentimentos ruins, que nada a sua volta conseguia fermentar algo a mais nele. Sentia-se tão cansado, tão exausto emocionalmente que decidiu simplesmente negligenciar qualquer possível ofensa.
一 Mamãe, tenha dó! 一 Will veio em seu socorro, passando a mão por suas costas. 一 Nico está muito abatido. Não o perturbe.
Mesmo que não quisesse magoar a madrasta, não havia outra forma de dizer isso sem ter que repetir. O loiro estava mais preocupado com ele do que com a possibilidade de ofender a matriarca. Apolo não o culpava, obviamente. Olhava-os com tanta inquietação que era notável que queria respostas assim que fosse possível dá-las.
O menor continuou brincando com o macarrão, juntou tudo em uma garfada e colocou na boca, forçando-se a mastigar e a engolir. Sua visão ficou turva pelas lágrimas, como vinha acontecendo de vez em quando, mas segurou sua vontade de chorar. Não podia, apesar de querer. Não podia envergonhar Will daquele jeito.
Pôs outra garfada de macarrão na boca e engoliu a seco, esperando que levasse sua tristeza embora goela abaixo, mas não adiantou. Suspirou, deixando-se levar pelos pensamentos sombrios, lembranças dolorosas e pelo puro e simples sentimento de desolação.
☀ ✲ ☀
O ar frio que invadia o veículo pela janela aberta acentuava ainda mais as lágrimas que haviam escorrido por seu rosto, fazendo o rastro latejar mesmo depois de seco. Nico não tinha forças e nem vontade de fechar o vidro. Ficava olhando para um ponto fixo, mas sua visão estava desfocada, imerso em pensamentos.
Odiava aquela paisagem idiota e se recusava a ficar pensando nela. Odiava aquele carro imbecil e se recusava a ficar pensando que estava dentro dele. Odiava o destino ao qual tinham que ir e se recusava a pensar muito nele. Odiava a si mesmo por ter aceitado e se recusava a ficar pensando nisso. Odiava o fato de sua irmã ter morrido e se recusava a ficar pensando muito nela.
Não era exatamente por ódio que estava rejeitando dar atenção as coisas ao seu redor, mas sim por mágoa. Novamente tinha se machucado. Novamente tinha tomado uma pancada da vida enquanto não estava olhando. Novamente tinham acertado uma flecha em seu peito quando não estava esperando.
O motivo de tudo aquilo? Nenhum. Nico não tinha tendências egoístas, mas se sentia muito egoísta por não dar valor ao que tinha que fazer: Visitar os pais de Will. Dois anos e sete meses, mas não tinha sequer conhecido os sogros. Que tipo de genro Nico era? Que tipo de namorado poderia se considerar por tamanha falta de noção?
Na verdade, tinham planejado fazer isso duas semanas antes da ligação, ligação a qual deixou Di Angelo a par da situação da irmã: Morta. Motivo? Acidente. Bia estava fazendo uma viagem até a cidade de Nico. Seria uma surpresa, mas devido as fortes chuvas no estado que ela tinha que cruzar, o carro derrapou e caiu da ponte, batendo em troncos enquanto descia uma longa colina, até ficar preso em algum lugar.
O corpo de Bia foi encontrado depois de algumas horas de busca e foi devidamente enterrado, em sua cidade natal. O ômega compareceu ao enterro, ele e William, mas se sentia muito culpado e desolado para fazer o discurso e acabou deixando nas mãos de Rachel. A função teria ficado para Thalia, noiva dela fazia três anos, mas ela não foi.
Não há palavras para descrever tanto sofrimento, tanta comoção, tanto desespero... Bianca Di Angelo e Maria Di Angelo foram enterradas lado a lado. Mãe e filha. Sua tão querida mãe e sua tão amada irmã. Sua primeira professora e sua confidente mais fiel. Mortas... Ambas de formas não naturais e dolorosas.
Como não se culpar? Como não pensar nas coisas que poderiam ter acontecido se mantivesse mais contato? Como não tomar para si a responsabilidade? Como evitar se sentir tão culpado? Como não se sentir tão inútil? Simplesmente inútil.
Nico estava sozinho agora. Elas eram a única família verdadeiramente de sangue que possuía nesse mundo. Como não se sentir tão sozinho? Como não... Será que havia um modo de não sentir que tudo aquilo era culpa e responsabilidade exclusiva sua? Havia um jeito de cessar essa dor agoniante?
O moreno passou a ter crises de pânico durante a noite. Acordava com falta de ar, depois de um pesadelo, e demorava a se recuperar. Will permanecia do seu lado, claro. Sua presença conseguia conter seu desespero na maioria das vezes, mas... E se começasse a não dar certo? Se começasse a chorar do nada?
Isso lhe dava medo, pavor até. Não queria causar uma má impressão nos pais do alfa, mas... Como evitaria ter uma crise de pânico ou de choro durante as conversas? Era mais do que óbvio que perguntariam-lhe tudo que tem direito. Mas e se não conseguisse se conter e guardar para si. Esse era o plano, na verdade. Guardar o máximo que podia e despejava isso em outro momento, quando fosse mais seguro.
Apenas não esperava que seguir esse plano pudesse ser tão árduo.
一 Vai ficar tudo bem, mio angelo. 一 Will apertou sua mão ao pararem em um sinal vermelho. 一 Vai ficar tudo bem.
一 Não tenho tanta certeza... 一 Confessou, apertando de volta.
一 Não é preciso se preocupar. 一 Sorriu tímido, sem saber se estava forçando demais a situação. 一 Não vou deixar que machuquem você.
Nico fechou os olhos, suspirou exausto e deitou a cabeça em seu ombro.
一 Eu sei, solzinho. Eu sei...
☀ ✲ ☀
一 Então você é italiano? Realmente? 一 Questionou Lídia, completamente empolgada.
一 Uhum... Nasci em Veneza.
一 Amorzinho! Corre aqui!
Nico apertou mais os dedos de Andrew nos dele. Precisava de toda a sua força de vontade, coisa que já estava escassa pelo luto, para aguentar toda a animação daquela mulher. Loira, olhos castanhos, pele relativamente bronzeada, mas havia algo nela que você batia o olho e pensava: "Essa não é a mãe biológica de Will nem aqui nem em Nárnia".
Talvez o jeito meio esnobe de falar. Talvez as covinhas na base das costas que ela insistia em mostrar usando vestidos de verão abertos na parte de trás. Talvez a maneira meio jovial de escolher as palavras. Talvez o padrão nada parecido com o do alfa de andar. Não sabia ao certo, mas algo nela tirava todas as dúvidas.
一 Sua mãe também é italiana?
A pergunta pegou-o um pouco de surpresa.
一 Sim... Ela era...
A mulher bateu palmas, como se fosse algo fantástico.
一 Daora. Por que se mudaram para cá?
一 É... é um assunto complicado. Eu...
一 Lídia! 一 Interveio Apolo. 一 Isso não é uma pergunta que se faça! Não é algo que perguntemos assim, tão naturalmente. Mal o conhece e já o metralha com questões constrangedoras dessa forma? Vai acabar assustando-o!
O fato inegável era que Nico já estava assustado. Não esperava por isso, em um momento tão delicado. A pior parte era que os pais de Will nem sabiam das novidades. O ômega tinha insistido que não queria bombardeá-los com a informação. Nem sobre a morte de sua mãe sabiam. Mesmo assim, Apolo estava sendo muito gentil, mesmo sem motivos.
一 Ai, amor! 一 Reclamou ela. 一 Não é pra tanto. Foram só umas perguntinhas básicas.
Pretendem ter filhos? Quando se casam? Já transaram? Doeu muito pra você? Quero meus netinhos, ein!
Não eram bem "perguntinhas básicas" que se faz no momento em que se vê o genro pela primeira vez. Além disso, qualquer coisa em relação à filhos lhe parece tão distante. E, pelo olhar incrédulo do namorado ao lado, percebeu que pra ele também. Não queriam se preocupar com isso agora. O assunto "filhotes" poderia ficar para depois.
一 Mas... E então? 一 Lídia voltou sua atenção para Nico. 一 Will nos contou que já dividem um apê. Faz muito tempo?
O casal se entreolhou.
一 Mais de meio ano, mais ou menos. 一 Respondeu Nico, hesitante.
一 Que tudo!
O moreno olhou-o confuso. Nem entre amigos tinha escutado algo parecido. Mas ela não lhe respondeu, continuou tagarelando o quão fofos eram juntos, esquecendo-se completamente de sua morbidez durante o almoço e não comentando sobre isso. Não conseguia compreender o raciocínio daquela mulher.
一 Então? Quando conheceremos seus pais, Nicolas? 一 Bombardeou ela. 一 Sua mãe deve ser uma mulher incrível e seu pai, um homem respeitável, eu imagino.
一 Ãn... Eu...
一 Lídia! 一 Reclamou Apolo.
一 Mamãe! 一 Censurou-a Will.
一 O que foi? 一 Disse, confusa. 一 Foi apenas uma pergunta.
Nico desviou o olhar, mordendo o lábio inferior. Novas lágrimas surgiram em seus olhos, mas não permitiu que a madrasta de Andrew as visse. Não queria falar sobre seu passado tão cedo, mas percebeu que não havia escolha.
一 Minha mãe... 一 Começou, hesitante. Reprimiu um soluço, torcendo para que ninguém notasse. 一 ...está morta, há um ano. Meu pai e eu nunca tivemos uma boa convivência. Me expulsou quando no início da minha adolescência e nunca voltei a vê-lo.
Lídia piscou, anestesiada por um momento. Apolo lançou-lhe um olhar compreensivo, mas Di Angelo interpretou de outra forma. Ele o olhava com pena. Era por isso que não quis contar sobre. Era por causa disso que não queria expor seu luto e nem falar sobre a morte mais recente. A ferida ainda estava muito aberta e dolorida. Ver alguém sentir pena de si por causa disso é como jogar sal por cima.
一 Desculpe-me, querido. 一 Sorriu ela, depois de um tempo. 一 Eu não sabia.
Ata. Mas vá pra p...
☀ ✲ ☀
一 Sinto muito pela minha madrasta, Nico. 一 Disse Will, se desculpando enquanto estavam sozinhos. 一 As vezes, ela não sabe a hora de calar a boca. Tinha até me esquecido disso.
一 Sem problemas...
Na verdade, tinha sim, mas estava muito concentrado analisando cada detalhe do antigo quarto do loiro para prestar atenção. Tinham vários livros de poesia nas estantes empoeiradas, enciclopédias enormes escritas à mão e alguns bonequinho de decoração do Star Wars, entre outros filmes de ficção. Todos deveriam ser aqueles colecionáveis do McDonald's, presumia ao menos.
A colcha de cama tinha estampa de universo, precisava ser trocada, e um grande violão estava deitado ali. Ao passar o dedo pelas cordas, o som enferrujado produzido lançou poeira para todos os lados, fazendo o menor tossir. Solace prontamente abriu as cortinas e destrancou a janela. Estava escuro lá fora, mas ao menos ventilava o lugar.
一 Há quanto tempo você não vem aqui?
一 Uns... oito anos, no mínimo.
Nico assobiou.
一 Isso é muito tempo.
一 Sim...
一 Sente falta?
一 De que em específico?
一 Da cidade, da rotina, dos amigos, desse quarto, das lembranças, da convivência com os seus pais... Essas coisas.
Will suspirou, sentou na cama e envolveu a cintura do moreno com os braços, encostando a cabeça em sua barriga.
一 Não, não sinto. Sentiria se tirasse da lista as coisas ruins que aconteciam todos os dias, mas, levando todas as brigas dos meus pais, problemas com uma nova madrasta, bullying dos meus "amigos" e encrencas injustas pelas quais recebia bronca em conta... Não, não sinto. Ainda mais se comparar com minha vida agora. Gosto de dividir um apartamento com você, gosto de acordar todos os dias e ver você ali, não um violão ou essa estante lotada de coisas que não preciso.
Nico quis chorar com tudo o que ouviu. Percebeu sinceridade em cada palavra e um certo desconforto no começo, mas a medida que ele ia falando, tornou-se mais fácil abrir o peito e dizer o que lhe incomodava. Aquilo era definitivamente uma declaração de amor. E... Sentia um alívio no coração quando ele disse, nas entrelinhas mas disse, que ele era sua vida agora, ou pelo menos boa e satisfatória parte dela.
一 Will, eu... 一 Soluçou, sem saber o que responder.
一 Shiii... Ei!
E ele o puxou para mais perto, fazendo com que sentasse em seu colo, uma perna de cada lado da sua coxa. Deitou a cabeça em seu ombro, decidindo-se entre chorar ou segurar a vontade imensa que se fez presente. Will o amava tanto assim? Realmente? Apertou-o nos seus braços, sendo abraçado na mesma intensidade um segundo depois.
一 Não precisa chorar, mio angelo. 一 Ouviu Solace dizer, beijando sua cabeça com uma serenidade que não conseguia compreender.
Sua voz ecoou por seu corpo, estremecendo todas as suas bases emocionais. Suas mãos acariciaram suas costas, seu calor se misturando com o dele. O cheiro do alfa estava impregnado em seu nariz, lhe reconfortando. Era tão bom, tão seguro, tão... perfeito. Deuses, perfeito é a palavra exata para o sentimento que o invadia quando estava com Will. Tudo parecia estar em seu devido lugar.
一 Eu te amo, Nico Di Angelo. 一 Ressaltou o alfa, afagando seus fios negros entre seus dedos. 一 Eu te amo muito, mais do que a minha vida. E nada, nada, nada, nem você mesmo, vai mudar isso dentro de mim.
Nico engoliu um soluço, enxugou ou olhos e beijou Andrew avidamente. Colocou no beijo todas as suas inseguranças, todo o medo, toda a dor. Se separaram por culpa do fôlego, um sorriso tímido e genuíno surgindo nos lábios do ômega. Descansou a cabeça em seu ombro, a paz retornando ao seu peito.
一 Eu também, William Andrew Solace. Eu também te amo, com toda a minha alma.
C O N T I N U A
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