Kayla volta do supermercado com o pacote enorme de suspiro que eu pedi. Abro o pacote, despejo dois terços do conteúdo em uma tigela e me ponho a esmigalhar cada suspiro com um martelo de cozinha. Esmago suavemente enquanto Kay come o resto.
Esse é o meu segredo. Massa de brownie, vitamina de ameixa e pó de suspiro. Misturo tudo até ficar homogêneo e ponho pra assar em fôrmas de silicone para cupcake. Não usei toda a farinha de suspiro na massa, então consigo misturar o restinho com a cobertura de brigadeiro que eu vou pôr em cima dos bolinhos.
一 Você está assando seus bolinhos especiais para um batalhão, maninho. 一 Ela assovia depois que eu tiro a terceira fornada do forno e deixo no balcão para esfriar. 一 Alguma justificativa?
一 É a única coisa que vai me ajudar a não surtar.
一 Por quê? O que rolou?
一 Leo me cumprimentou na frente do Nico. Chamou a atenção dele pra mim.
一 Putz! Que merda, hein.
Limpo as mãos no avental amarelo que ganhei de aniversário no ano passado e pego a barra de chocolate tamanho família que eu deixo no congelador. Pego uma faca bem afiada e começo a cortar o chocolate. Está ficando meio esfarelado, mas eu vou ter que derreter em banho maria de qualquer maneira, então não importa.
一 Tenho um pressentimento estranho sobre essa festa, Will. 一 Diz ela do nada, enquanto joga a embalagem fora. 一 Não é ruim, mas não é bom.
Sinto um arrepio na espinha enquanto coloco água na chaleira elétrica pra ferver. Kay sempre teve uma intuição excelente e certeira. O fato de ela não saber se seu pressentimento pende pra um lado ou outro me deixa com um medo de gelar a alma.
Austin entra inesperadamente na cozinha e pega um dos bolinhos ainda quentes. Está com um sorriso de um lado a outro no rosto, sinal de que acabou de conversar com Liam por mensagem. Quem é Liam? Simplesmente o maior crush que meu irmão já teve na vida. Ele sente por Liam basicamente o que eu sinto por Nico. A diferença é que eles mantêm contato e flertam, eu mantenho a maior distância possível.
一 Sobre o que vocês estão falando? Will parece ter visto um fantasma. Se bem que ele é apaixonadíssimo num, então não faz sentido. 一 Implica ele, soprando o bolinho antes de mordê-lo.
A chaleira termina de ferver e despejo a água numa fôrma retangular. Coloco a vasilha de alumínio cheia de chocolate em cima da água fervente.
一 Vai ter uma festa na véspera do Dia dos Namorados na casa da Piper. 一 Começo a explicar, mexendo o chocolate de um lado pro outro. 一 Leo me fez ser notado por Nico e Kay está com um pressentimento sobre a festa.
一 Bom ou ruim.
一 Eu não sei.
一 Putz grila. Agora ferrou.
Austin abomina palavrões. Ele nunca fala palavrão e odeia que pessoas falem perto dele. Às vezes é engraçado as expressões que ele usa pra substituir as "palavras feias" e outras vezes é só meio irritante. Aparentemente, o Liam acha muito fofo essa mania dele. Esses dois juntos aumentam minha glicose em níveis preocupantes.
一 É exatamente essa sensação que eu tô sentindo agora! 一 Exclamei, soltando a colher de pau na vasilha e passando as mãos pelo cabelo. Eu tô muito suado, na moral. 一 Tem algo muito estranho por trás do comportamento do Leo e... o Nico tava me olhando esquisito também. Como se... Deixa pra lá.
一 Como se o quê, Will? 一 Insistiu Kay.
一 Como se... eu fosse uma constante nos pensamentos dele. 一 Digo num suspiro. 一 Foi aquele olhar de "finalmente estou vendo você e não apenas pensando em você". Sabe?
Austin sorri ainda mais e dá um tapinha no meu ombro.
一 Tenta relaxar um pouco, maninho. Talvez você tenha uma chance, afinal.
一 Improvável. Eu posso ter interpretado errado. Eu não encarei ele por muito tempo pra ter certeza quanto a isso.
Minha irmã vem até mim e encosta a testa no meu ombro por um segundo antes de ir até a vasilha com o chocolate derretendo. Observo-a mexer e então tirar a vasilha de alumínio de cima da água quente rápido. Movimentos fluídos e certos, sem hesitar por um segundo.
Ela e Austin nunca pensam demais antes de fazer ou dizer algo. Esse é o meu problema: pensar demais. Eu sempre penso demais nas coisas. Não sou muito confiante de mim mesmo. Não confio em mim mesmo com interações sociais. Por isso meu único amigo é o Leo. Não tenho ninguém além dele. E eu não passo meu tempo na escola com ele.
Como meu irmão disse, preciso relaxar. Preciso parar de pensar tanto. Preciso ter mais confiança em mim mesmo. É muito estressante pensar. Preciso me desprender das minhas inseguranças. Relaxar. Segundo o Google: diminuir a força, a tensão ou a compressão de; afrouxar(-se), enfraquecer(-se).
Por que diachos parece tão difícil simplesmente relaxar?
一 Tenta relaxar um pouco. 一 Kay ecoa as palavras de Austin. 一 Eu termino tudo aqui. Vai descansar. Você ficou cuidando de trabalhos escolares e revisão de conteúdos o dia inteiro, não foi? 一 Assinto. 一 Escolhe a roupa da festa, vê umas finalizações que você pode fazer nesse cabelo e vai descansar, Will.
Penso nos bolinhos por um instante, quase me preocupando, mas me repreendo imediatamente. Kay sabe perfeitamente como eu os deixo prontos e vai fazer até melhor do que eu. Ela dá mais do que conta do recado. Não tem por quê eu estar aqui se ela assumiu o comando da situação.
Austin põe a mão nas minhas costas e me guia de leve pra fora da cozinha enquanto ainda estou pensando, fazendo uma lista mental de coisas que eu posso fazer com o tempo livre que ganhei inesperadamente. Tomar banho, lavar o cabelo, separar a roupa, reler Star Wars, ver um filme do Jim Carrey. A lista é longa. A decoração dos bolinhos leva muito tempo.
E se eu...
一 Não! 一 Exclama meu irmão, antes mesmo que eu complete o pensamento. 一 Nada de escola, nada de provas, nada minimamente acadêmico. Você vai relaxar.
Bufei e fui para o meu quarto. Me joguei na cama e levantei o lençol até o queixo. Eu poderia tirar um cochilo. Fiquei até 2 da manhã estudando artigos de Física pro trabalho mega-elaborado que a professora passou. E ainda tive que acordar 5 horas pra minha caminhada matinal. Umas horinhas de sono eram mais que bem-vindas.
Senti meus olhos pesando antes mesmo que eu pudesse bocejar. As cobertas não estão nem frias nem quentes, mas perfeitas. Macias. Me aconcheguei mais e fechei os olhos, afundando na escuridão dos sonhos segundos depois.
💋
一 Por quê?
O ar que nos envolve está carregado com a minha leve irritação e a tensão que vejo marcada nos ombros, nas mãos e na expressão de Leo. Ele parece apavorado, por mais que saiba que nunca nem pisei numa formiga que fosse. Nunca faria nenhum mal a ele, seja físico ou mental. Apenas quero entender o motivo que o levou a quebrar sua promessa.
一 Por que fez aquilo?
Ele engoliu em seco.
一 Will... Eu não posso contar.
一 Você me prometeu que não chamaria a atenção dele pra mim. Você me prometeu que ele nunca saberia que nos conhecemos. Você me prometeu. Prometeu pela nossa amizade que o único garoto por quem eu lamberia o chão do banheiro masculino não saberia da minha existência e nem da nossa conexão.
一 Will, eu sinto muito.
Sente mesmo. Dá pra ver em sua expressão, na maneira como ele torce as mãos, na maneira como está perfeitamente imóvel na cadeira giratória. Se ele não sentisse muito, estaria dando voltas e voltas sem ligar para o que estou dizendo. Mas ele liga, ele se importa.
一 Então por quê? Por que você quebrou a promessa? Por que traiu minha confiança? A troco de quê? Eu só quero entender o motivo pelo qual meu melhor amigo da vida inteira fez a única coisa que eu não queria que acontecesse.
Leo está segurando as lágrimas. Eu também estou. Estou sentado na minha cama, apertando a edição capa dura de Star Wars: Episódio 1- A Ameaça Fantasma que ganhei em um dos meus aniversários para que minhas mãos não tremam.
Estou nervoso, triste e decepcionado. Me sinto traído. Leo sempre foi leal, confiável. É muito difícil acreditar e aceitar que isso está realmente acontecendo. Respiro fundo. Deixo o livro de lado. Uma lágrima escapou. Não importa. Não deveria importar. Não sei o que pensar. Preciso de um tempo para decidir o que fazer.
一 Você não pode me contar nada?
一 Não, não posso. Se eu pudesse, te juro que contava, mas eu...
一 Shiiii....
Balanço a cabeça de um lado pro outro.
一 Não consigo confiar nos seus juramentos agora, Leo.
一 Will... Confie em mim, por favor. Não posso contar, mas eu não fiz aquilo por um motivo ruim. Preciso que confie em mim. Por favor. Eu te imploro. Imploro de joelhos.
Entrei em pânico quando ele se levantou e fez menção de se ajoelhar.
一 Não! Não faça isso. Não se ajoelhe. Não faz isso.
一 Will, precisa confiar em mim. Eu não...
一 Não quero confiar em ninguém agora. 一 Me joguei pra trás na cama, a cabeça pesando muito de repente. 一 Preciso de tempo pra pensar, decidir o que fazer, no que acreditar. Você traiu minha confiança, Leo, e até que suas palavras se provem verdadeiras, não consigo confiar em você de novo.
一 Will...
一 Por favor, vá pra casa. Depois a gente conversa.
一 Depois? 一 Ele cruzou os braços, inseguro. 一 Quando?
一 Quando eu tiver pensado e decidido alguma coisa. Não se estresse esperando. Pode demorar.
一 Will, eu sinto muito mesmo. Se tivesse outra forma de ter feito... Se eu tivesse tido outra escolha, eu jamais teria feito o que fiz.
一 Poupe seu fôlego, Leo, por favor. Está me estressando.
一 Até breve, Will.
一 Até...
Ouvi seus passos pelo quarto até a porta, a porta abrir e fechar. Virei de lado e chorei amargamente. Solucei soluços que me sufocariam se ele ficasse aqui por mais um segundo que fosse. Chorei lágrimas que estão presas nos meus olhos desde o momento em que dei um passo para o lado e Nico continuou me encarando.
Leo é tão insistente. Não desiste fácil. É mais persistente do que qualquer outra pessoa que já conheci. Normalmente eu admiro isso nele, mas hoje isso se mostrou um verdadeiro incômodo. Quase tive que me levantar, com um caminho de lágrimas no rosto, e expulsá-lo do quarto eu mesmo. Essa perseverança dele é às vezes admirável e às vezes intolerável.
Respiro fundo entre os soluços, o coração partido. Acho melhor eu dormir. Quem sabe assim eu descanso e reservo as lágrimas para algum filme triste quando eu acordar. Melhor. Pego o lençol dobrado no pé da cama e o desenrolo. Me cubro e viro um casulo.
Durmo.
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