Refúgio - Capítulo Seis

 



 Já passava das duas da manhã quando ouvi passos se aproximarem. Gelei até os ossos. Ninguém mais sabia daquele lugar. Não tinha como saberem, já que a casa na árvore fica muito longe pra qualquer um ver e ninguém são se aproximaria da minha casa para investigar o quintal.

 Permaneci parado como uma estátua, de costas para a porta da casa até que ouvisse o assoalho gemer sob o peso de outra pessoa. Quem quer que fosse, respirou fundo e se sentou, as costas contra as minhas.


一 Fico feliz que outra pessoa tenha encontrado este lugar. 


 Aquele filho da puta de novo.

 Meu sangue ferve, mas me mantenho parado, contendo minha vontade de bater nele e jogá-lo daqui de cima. Por quê? Ele conhece o meu refúgio. Espero para ver o que ele vai dizer.


一 Meu pai construiu pro meu irmão mais velho antes que eu nascesse. 一 Ele continua falando. 一 Era o lugar favorito de Lee no mundo todo. Ninguém podia subir aqui. Mas um dia ele me deixou vir. Me mostrou as poesias que escrevia. Raivosas, amorosas, tristes, esperançosas. E eu me encantei por ele e pelo lugar.


 Um bolo se formou na minha garganta.


一 Lee era muito evasivo. Não respondia perguntas pessoais, não falava o que pensava, focava mais na outra pessoa do que em si mesmo. O centro da roda nunca era ele. Mas aqui ele brilhava como a estrela que sempre foi. Dentro das linhas do caderno, ele dizia tudo o que nunca diria a ninguém. E eu tive permissão de conhecê-lo daquela forma.


 Ele respirou fundo, o corpo caindo mais contra o meu até que sua cabeça se apoiasse ao lado da minha nuca. Aquele contato era o mais próximo que eu tinha com alguém em meses, anos até. Meu coração estava descompassado, assimilando suas palavras e aquele contato físico.


一 Eu me senti honrado em muitos níveis diferentes. Meu irmão mais velho, meu ídolo, me mostrando aquele lado dele que nunca ninguém viu ou veria. Lee sempre me inspirou a ser eu mesmo, mesmo que dentro de palavras num papel.


一 Você fala dele no passado. Por quê?


 Era a primeira vez que eu falava desde que gritei, chorei e esperneei diante de Percy Jackson, quando ele me deu a notícia da morte de Bianca. Meu coração ainda batia rápido, mas parecia mais leve. Minha garganta ardia levemente. Eu precisava tomar água.


一 Suicídio. Ele amarrou uma corda na porta e se jogou daqui de cima.


 Arrependimento me corroeu até os ossos. E eu pensando em jogar ele...


一 Nunca entendi suas motivações, até que li absolutamente tudo o que Lee escreveu. Papéis soltos, cadernos inteiros e cartas lacradas, destinadas a pessoas que nunca receberiam. Nunca receberão, de qualquer forma. Eu li tudo. Cada palavra. Foi... desastroso.


 Minha respiração está presa na garganta, esperando ansiosamente a próxima frase que esse loirinho de merda iria dizer.


一 Tinha coisas bem pesadas naqueles cadernos, principalmente os da época em que ele estava entrando na adolescência. Hormônios, raiva, paixão, perguntas. Descobri que meu irmão enviava cartas para um garoto misterioso que conheceu num acampamento de férias. Descobri que ele odiou por um tempo. Descobri que ele não tinha certeza de nada na vida.


一 Deve ter sido difícil ler tudo.


一 Mas eu li. Tive umas vinte crises de ansiedade e pânico até terminar tudo, mas li. E eu queria ter notado. Queria ter percebido que havia algo errado. Queria ter percebido que ele estava irremediavelmente apaixonado por um garoto que nunca mais veria. Queria ter notado sua falta de amizades. Colegas, nunca amigos. Queria ter notado e ajudado.


 Um suspiro paira no ar.


一 Depois de muito tempo, caí em mim. Mesmo que eu tivesse percebido todas aquelas coisas, nunca poderia ter feito diferença. Doeu como o inferno. Odeio ser impotente. Mas tive que aceitar que nada do que eu tentasse ajudaria. Se eu não aceitasse o fato, enlouqueceria. Cedo ou tarde. Me corroeria de culpa todos os dias pelo resto da minha vida.


 Quando Bianca morreu, preferi culpar Percy por isso. Coloquei a culpa nele porque era mais fácil que responsabilizá-la pelo que escolheu fazer. Eu a amo demais para culpá-la por ter morrido por causa de suas decisões, então responsabilizei um terceiro, alguém próximo o bastante para que fosse fácil me convencer de que a culpa era dele.

 A dor me tornou quem eu sou agora. Fermentei essa dor, deixei que ela criasse raízes. Deixei que as lágrimas me inundassem até que eu estivesse preso num oceano da minha própria lástima. Por que eu continuo culpando outra vítima?


一 Eu sou muito paranoico e perfeccionista, me preocupo demais com tudo. E eu deveria ter te tratado melhor. Eu não deveria ter dito o que eu disse e nem insinuado o que insinuei. Peço mil desculpas por isso. 


 Solto a respiração em um ofego surpreso. Meus olhos ficam úmidos e não consigo controlar o impulso de virar um pouco o rosto para poder olhar para ele.


一 Não precisa me perdoar, na verdade. 一 Continua dizendo. 一 Eu só... percebo agora que você está carregando uma dor muito semelhante a que abri mão de carregar e isso pode te afundar. Não quero que mais uma vida seja perdida por coisas que não podem ser controladas ou sequer previstas.


 Há um gosto amargo na minha boca: todas as palavras que eu escrevi, mas nunca pronunciei. Nunca senti a dor na ponta da língua, apenas na ponta dos dedos. Talvez eu devesse me permitir falar sobre o que aconteceu com alguém.

 Falar...




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