Braços me rodeiam agora

 



 Passo o dedo em frente ao seu narizinho, sentindo sua respiração. Elliot dorme tão pacificamente que temo que esteja morto no próximo instante, que meu pai o leve para longe de mim, que a paz que tenho sentido me seja arrancada.

 A luz da lua entra pela fresta que deixei na cortina e ilumina a pele do meu bebê. Pele negra suave como se fosse feita de todas as coisas macias que existem no mundo. Olhos vermelhos brilhantes. Cabelo cacheado. Ele tem seis meses, então não sei se vai continuar assim. Seu sorriso e seu olhar amoroso me lembram de TJ. É reconfortante.

 Aliso sua bochechinha suavemente, perdido em pensamentos. Dormindo de barriga pra cima, como uma estrela do mar, seu rosto está voltado para mim, é como se ele estivesse mostrando que quer que eu seja a primeira coisa que ele vai ver quando acordar. Me aproximo de Elliot com cuidado e beijo sua cabeça, cheirando um pouco no processo. Cheira a amor.


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 Conheci TJ, o pai de Elliot, por acaso. Ele parecia muito deslocado na cidade e foi um alvo fácil de assalto. Pegaram a corrente de ouro que estava usando e fugiram. Eu vi isso acontecendo e me pus a perseguir a pessoa que o tinha roubado. Sempre fui rápido. Alcancei a pessoa, desmaiei ela e a levei até a polícia. Depois de registrar o B.O, entreguei a corrente a TJ.

 Ele agradeceu imensamente e foi super gentil. Naquele momento, percebi o quanto ele é bonito. Cabelos crespos, pele negra brilhante e olhar afável. Era diferente de qualquer garoto que já conheci. Era diferente de qualquer pessoa que já conheci.

 Na época, eu ainda estava aprendendo a confiar nos outros. E por mais que eu amasse meus pais adotivos e os poucos amigos que tinha feito, não me abria facilmente para ninguém. Foi... extremamente doloroso me dar conta de que algo em mim estava se desfazendo e descansando diante daquele sorriso tão puro.

 Ninguém nunca sorriu pra mim assim.


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 Desde aquele dia, sempre o vi e sempre conversávamos. Me vi sorrindo de volta, rindo de suas piadas e contando os lancinante fatos e ocorrências da minha vida. Ele me devolveu minha confiança com mais afeto e amor do que eu estava acostumado a lidar. TJ me apoiou e me deixou chorar porque sabia que eu precisava. 

 Também me contou algumas coisas. A morte da mãe dele, o fato de que não conhecia o pai, a vida no orfanato, o bullying na escola por ser negro, o desdém por querer ser militar e o quanto as coisas melhoraram depois que ele construiu sua própria família de amigos, perdoando seu passado e vivendo a vida como dá.

 Eu fiquei encantado com TJ. Minha única experiência romântica foi um garoto há muito tempo, quando eu ia completar 12 anos. Eu pouco sabia sobre amor, romantismo e todas essas coisas complicadas, mas sentia toda essa afeição avassaladora ferver em meu sangue.

 As muralhas que construí ao meu redor, feita de tijolos de mágoa, dor e incompreensão, foram caindo. Eu mesma fui derrubando-as, um pouco por vez, toda vez que conversava com TJ ou toda vez que simplesmente existia ao lado dele, em silêncio, pela primeira vez em anos, acolhedor.

 Em silêncio, eu podia admirá-lo e pensar em como me sentia. Em silêncio, eu podia analisar cada sensação que percorria meu corpo, que por muito tempo eu odiei. Em silêncio, eu podia encostar a cabeça no ombro daquele garoto incrível e senti-lo abraçar minha cintura carinhosamente, me aconchegando em seu abraço. Amo os abraços de TJ.


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 Nascer biologicamente gênero fluído não foi algo que eu escolhi, mas a morte é fluída e meu pai é o deus da morte, Tânatos. Nunca descobri se TJ também era um semideus, mas, se era, provavelmente não era romano, como eu. Ou grego como um dos meus três melhores amigos. Nunca descobri. Na verdade, nunca me importei com isso. Era bom manter os deuses longe de alguma coisa na minha vida pelo menos uma vez.


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 Um dia, ao lado dele, percebi, rápido como se um raio tivesse caído na minha cabeça: Eu me apaixonei por TJ, veementemente e irremediavelmente. Percebi, através de seu olhar de amorosidade infinita: Ele também havia se apaixonado por mim, tanto quanto. E aquilo me assustou pra caralho. Demorei semanas para me acalmar diante desse fato.

 Me confessei para ele, ouvi doçuras saírem de seus lábios em resposta. Pela primeira vez em anos, não senti vontade de fugir do desconhecido. Sua boca se entrelaçou com a minha. Suas mãos adoraram meu corpo e eu ainda não sentia vontade de fugir. Seu corpo se uniu com o meu e não senti que precisava fugir.

 Não hesitei nem por um segundo.

 Permiti.


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 Nunca pensei que teria uma vida sexual, menos ainda que teria uma vida sexual com um namorado. Passei muito tempo me achando incapaz de ser amada, que eu era uma falha ambulante, que eu nunca seria querida por ninguém. Mas eu fui amada por TJ, desejada por TJ, adorada por TJ, colocada em um pedestal.

 Eu sentia isso dentro dos meus ossos, como uma verdade incontestável. Eu sou o amor da vida de TJ, sua alma gêmea, sua companheira destinada. Nada do que eu fizesse e nada do que eu me provasse ser diminuiria seu amor por mim. E eu me via correspondendo essas circunstâncias. TJ nunca deixaria de ser amado por mim. Ele é o homem perfeito para mim, que melhor lida com meu humor e melhor me entende.

 Vênus só podia estar brincando comigo. Toda a minha vida era uma piada dos deuses. Mas, naquele momento, eu estava diante do ser humano que parecia ter sido moldado para ser meu e eu, moldada para pertencer a ele. Inexoravelmente ligados um ao outro.

 Fiquei acordada certa madrugada, admirando-o e pensando enquanto dormia ao meu lado. Deitado de barriga para cima, o rosto voltado para mim, como se eu fosse ser sua primeira visão de manhã, ao abrir os olhos.

 Eu podia imaginar meu futuro ao lado dele. Eu podia abdicar da minha vida como guerreira por ele, caso não fosse um semideus. Eu podia desistir de lutar contra monstros. Eu podia obter uma boa formação acadêmica e nos sustentar. Eu podia esperá-lo enquanto ele fosse lutar na guerra. Eu podia estar bem aqui quando ele voltasse. Eu podia cuidar dele pra sempre. Amá-lo pra sempre.

 Era um tipo de amor que não estava apenas dentro de mim, mas já se infiltrara no meu DNA. Um amor que faz parte de quem eu sou. Se eu não amá-lo, não sou eu. O amor que sinto por ele é tão essencial para minha sobrevivência quanto meus ossos, meu sangue ou meu cérebro. Tão essencial quantos minhas vértebras, minhas veias e meu coração. Tão essencial quanto meu estômago, meus pulmões e minha garganta. 

 A luz da lua invadia o quarto, sua pele brilhando. Me aproximei com cuidado e me encaixei naquele espacinho especial de seu peito, que parece ter sido feito para me acomodar. Deito a cabeça em sua clavícula e descanso a mão sobre seu coração, ritmado e lindo.


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 Uma carta.

 Uma carta é tudo o que eu tinha de TJ agora. Li ela cuidadosamente. Chorei um pouco, me recompus.

 O Exército o chamou.

 Ele tinha que ir.

 Eu entendia plenamente.TJ nunca me abandonaria. Nunca me deixaria para trás. Por isso escreveu a carta. Jurou amor eterno. Me pediu para guardar algo importante até que voltasse. E eu prometi a mim mesmo que o esperaria pelo tempo que fosse necessário.

 Minha determinação em esperá-lo não impedia que sua partida doesse em meu âmago. Doía como se eu estivesse nos Campos de Punição Eterna. Doeria menos se eu ficasse dois anos no Tártaro. Doeria menos se eu morresse.

 Me mantive são através das memórias e da companhia das outras pessoas que eu amava ter em minha vida. Lembrava dos momentos bons. Vivia outros bons momentos. Meus pais adotivos sempre foram muito compreensivos e me apoiaram muito. Meus amigos me lembravam de que a vida é linda, não por meio de palavras, mas por meio das pequenas alegrias que me proporcionam.

 Suportei a dor e o desânimo.

 Suportei tudo por amor.

 Porque meu amor voltaria para casa.

 Um dia.


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 Um mês depois, descobri que Elliot viria ao mundo. As relações sexuais que tive com TJ acabaram resultando em alguma coisa. Uma coisa que eu não sabia como seria lidar.

 Por boa parte da gravidez, tive medo. Medo de colocar mais um semideus, um Legado, no mundo. Medo de ser um pãe horrível. Medo de fazer tudo errado. Medo de agir como ela. Medo de que eu não soubesse como cuidar dele, um serzinho tão pequeno e dependente. Medo de ser o universo inteiro de um humaninho tão adorável.

 A outra parte, ansiei desesperadamente para que ele viesse logo, para o tempo passasse depressa, para que eu pudesse vê-lo. Eu queria saber se Elliot se pareceria comigo ou com TJ. Seria uma misturinha nossa ou puxaria mais um lado do que outro?

 Eu fantasiava com a primeira vez que o veria. Fantasiava com sua futura personalidade. E também pensava em como educaria-o. Em como eu ensinaria certas coisas a ele. Como eu o condicionaria a tratar os outros. Como eu explicaria a ausência de certas pessoas na vida dele.


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 Eu tinha medo de ser como minha mãe. Ela tinha sido horrível comigo quando eu era criança. Me batia, me xingava e me torturava. Para ela, eu era a pior criança que alguém poderia ter. Cresci amuado, quieto como um rato. Com pavor de qualquer voz mais alta, de qualquer mão levemente levantada, de qualquer olhar meramente irritado.

 Eu cresci vivendo um inferno tanto em casa quanto na escola. Não era respeitado, não era cuidado, não era sequer tolerado. Tudo o que eu fizesse era motivo de chacota, todo erro que eu cometesse era motivo de zombaria e toda lágrima que eu derramasse era frescura da minha parte. 

 Aprendi muitas coisas.

 Aprendi a engolir o choro, a fazer uma expressão neutra, a pedir desculpa antes mesmo de respirar perto de alguém, a não falar nada mesmo querendo gritar, a não demonstrar nada que me comprometesse, a aturar qualquer coisa que me dissessem, a ficar em silêncio em qualquer ocasião, a não reagir em nenhuma situação.

 Depois dos meus onze anos, minha raiva reprimida transbordava. Fui para o Acampamento Júpiter com oito anos e lá eu transformei minha raiva em determinação.

 Aprendi outras coisas.

 Aprendi a atirar, a usar uma faca, a mirar, a manusear espadas, a lutar corpo a corpo, a usar qualquer tipo de arma, a transformar até coisas comuns em arma, a machucar, a intimidar, a usar as palavras, a me camuflar, a correr mais rápido, a me mover mais agilmente, a desviar de qualquer coisa, a não esperar nada de ninguém.

 Quando criança, me moldaram para ser um saco de pancadas. Quando cresci, me lapidei para ser uma arma. Não porque eu queria machucar as pessoas, mas para me proteger de mais dor. Não porque eu queria ser sozinho, frio e irascível, mas porque eu precisava disso para não voltar a ser uma criança vulnerável e mal-tratada.

 Não porque eu queria me tornar uma arma amargurada, mas porque pior ainda é ser o alvo imerecido.


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 Nenhuma dor que eu senti na minha vida de semideusa me preparou para a dor que eu sentiria dando a luz ao meu filho. Os minutos mais demorados e torturantes da minha vida. Perdi os sentidos de tanta força que eu fazia. Quando acabou, precisei respirar fundo e prestar atenção ao meu redor. Ofegante do esforço, ouvi seu choro.

 Choro sofrido, desamparado, desolado.

 Chorava a plenos pulmões, como se me chamasse.

 E meu coração se contorceu dolorosamente. Uma dor excruciante em meu peito, se alastrando por todo o meu corpo já dolorido. 

 Aquele era o meu bebê me chamando. O bebê que eu gerei e pelo qual esperei.

 Dor, medo e ansiedade fermentavam em meu peito enquanto a enfermeira trazia o meu bebê para perto de mim.

 Quando o vi, tudo desapareceu. O medo foi embora, levando a ansiedade consigo. A dor que eu sentia em meu corpo era um detalhe muito pequeno para que eu me importasse. Paz me encheu de dentro pra fora. Senti um tsunami intenso de amor incondicional me abalou. 

 Ele era a cara de TJ. Se alguém os visse juntos, jamais poderiam negar que eram pai e filho. 

 A enfermeira colocou ele nos meus braços e eu o acomodei, balançando de leve enquanto cantarolava suavemente. Seu choro cessou na hora em que ouviu a melodia que cantei para ele durante toda a gestação. Passei o dedo por suas sobrancelhas, por sua bochecha, por sua testa, e foi a realização de um sonho.


一 Já passou. 一 Sussurrei para Elliot. 一 Pãe tá aqui.


 Elliot abriu os olhinhos. Vermelhos. Aquele olhar me quebrou totalmente.


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 Enquanto crescia, fui chamada de feia por diversas pessoas por causa dos cabelos negros, pele pálida e pela heterocromia, que me fez nascer com um olho ônix e outro vermelho como sangue. Cresci magrela, sem "atributos femininos". Nunca liguei pra isso, afinal, não sou mulher 100% do tempo. E não preciso ter seios volumosos para ser feminina.

 Decidi, ainda na gravidez, que acostumaria Elliot a me chamar de pãe. Não porque eu não tenho esperanças de que TJ vai voltar, mas porque um dia ele vai ter idade suficiente para entender que sou tanto homem quanto mulher. Um dia ele vai entender que sou tão pai dele quanto mãe. E vai ser menos confuso pra ele do que trocar o termo de acordo com como estou me sentindo.


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 Seis meses desde que Elliot nasceu.

 Faz mais de um ano que TJ foi convocado e ainda estou esperando por ele. Esperando por ele com uma surpresa. Já me peguei imaginando como ele reagiria. Já me peguei pensando em quando voltaria. Será que apareceria na minha porta na manhã seguinte? Não tenho como saber.

 Se ele estivesse morto, eu saberia. Sentiria sua alma descendo ao Mundo Inferior. Inclusive, recebi uma benção de Hades por todo o meu sofrimento. O deus do Submundo é um dos mais gentis e afetuosos, sem dúvida. Recebi juventude eterna. Enquanto eu servir ao Submundo, matando monstros e ajudando a dissipar almas do Mundo Mortal, viverei sem envelhecer.

 É maravilhoso pensar que, se eu for cauteloso o suficiente, posso viver muito e acompanhar cada etapa da vida do meu filho com energia e disposição. Elliot se tornou a razão do meu viver.

 Perdi meus pais adotivos.

 Meus amigos estão constituindo família agora. Vejo-os de vez em quando. 

 Mas Elliot é uma presença constante e necessária. Não apenas por ele depender de mim para viver, mas porque eu passei a depender dele para ter ânimo de me levantar todas as manhãs e madrugadas. Eu o amo tanto que sua respiração é o único combustível de que preciso. Suas risadas me arrancam sorrisos sinceros e seus balbucios fofos fazem meu coração explodir.

 Meu pequeno menino.


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 Dois anos desde que TJ foi convocado.

 Talvez TJ tenha morrido. Se esse for o caso, meu pai e Hades não permitiram que eu soubesse. De alguma maneira, me protegeram da dor que sentiria com essa repentina notícia. Venho matutando sobre essa possibilidade há tempos, de forma que processei-a pouco a pouco. A probabilidade é alta.

 TJ nunca me abandonaria.

 Ele me amava incondicionalmente.

 Eu o amava incondicionalmente.

 Nos amávamos incondicionalmente.

 Seja do jeito que for, está tudo bem.

 A cada dia que se passa, sinto menos dor em relação a mim mesmo, a essa possibilidade, ao meu passado, a tudo o que vivi, a tudo o que perdi. Tudo o que aconteceu parece ter me preparado para este momento, para este papel que exerço, para esta pessoa para quem vivo por.

 Elliot precisa de mim, como pai e como mãe. E sou a pessoa perfeita para dar a ele um amor que eu mesmo careci muito a medida que crescia. Eu sei as consequências de não ter esse amor. Eu sei as consequências da violência e da dor. Eu sei o que acontece quando você negligencia uma pessoa tão pequena e vulnerável.

 Eu não merecia nada daquilo.

 Elliot não merece nada disso.

 Ele é uma criaturinha preciosa. Feita a partir de mim e TJ. Ele foi feito de amor, carinho e companheirismo. Ele foi feito de devoção. Devoção que eu tinha por TJ e devoção que TJ tinha por mim. Esse menininho é um presente do universo para mim

 Um último pedacinho de TJ, a quem eu ainda amo com tudo o que eu sou.

 TJ amaria ter um filho.

 Eu amo ter um filho.

 Ele merece isso e eu também mereço.


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 Nas noites em que choro baixinho por causa das recordações dos gritos, Elliot rola em minha direção e aperta a correntinha de ouro em meu pulso. Eu coloquei três pingentes: um com as iniciais TJ, um coração e outro com a letra E.

 Porque esses dois compõem o meu universo.

 Quando a mãozinha pequena de Elliot aperta a correntinha, eu o puxo para mais perto e o abraço. E é como sentir os braços de TJ ao meu redor outra vez. Uma sensação calmante e reconfortante se espalha por meu peito, alcançando todas as outras partes do meu corpo. E eu caio em sono profundo.

 Braços me rodeiam agora.

 Não estou desamparado.

 Nunca mais voltarei a estar.



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