Chuvinha - Capítulo Quatro

 


 É... Eu me fodi bonito. Nico avisou a irmã dele que ia pra minha casa e que provavelmente voltaria pelas cinco ou seis da tarde. Eu me lembro que Bianca nunca foi controladora e deixava o irmão a vontade porque sabia que quem estava vivendo e lidaria com as consequências das próprias atitudes seria ele. Hades, meu agora sogro, também sempre foi muito de boa com tudo o que se relacionasse aos seus filhos.

 Há um contraste dos Di Angelo pros Solace. Eu tenho vários irmãos e irmãs, ênfase em "vários", e quase nunca se tem privacidade naquela porra. Meu pai é médico, meu padrasto é botânico e minha irmã é quem cuida de nós a maior parte do tempo. Dividimos as tarefas, cuidamos uns dos outros e compartilhamos praticamente tudo: traumas, lembranças, momentos, segredos. É difícil ter individualidade vivendo assim.

 A única coisa que ninguém pode sequer encostar é em itens pessoais. No meu caso, são meus livros e bonequinhos do McDonald's. No caso de Kayla, são os DVD's de música dela. No caso do Austin, são seu saxofone. No caso da Gracie, são seus apetrechos de culinária. No caso do Jerry, são seus brinquedos. No caso de Yan, são seus CD's de filmes infantis. Também tinham os itens pessoais de Lee e Michael, que guardamos.

 Além de que só os irmãos mais velhos (Gracie, Kayla, Austin e eu) têm celulares. Fizemos um combinado de não mexer nos celulares uns dos outros sem permissão, mas isso não impede de esconder o aparelho para pregar uma peça no dono dele.

 Eu falei que privacidade não existe naquela porra, né? Vocês vão entender isso em breve.

 Nico parecia muito contente por rever meus irmãos depois desse tempo. Já eu tava pensando em como não fazer Kayla jogar algo nele. Todos os Solace se protegem e são super unidos, então eles sabem sobre a mágoa que o meu atual namorado me causou no passado e, muito provavelmente, vão querer trucidá-lo como vingança.

 Pois bem. Eu não quero que matem o amor da minha vida antes que este tenha a mísera chance de se explicar. Preciso bolar um plano, mas estou ficando cada vez mais desesperado e sem ideias. 

 "Ah, mas você precisa acreditar que as coisas vão dar certo". Se tratando dos meus irmãos e de toda a situação do passado que não foi resolvida para eles, não vai dar certo. São os meus irmãos e foram eles que me consolaram quando me afastei de Nico. Eles sabem o quanto sofri e não vão perdoar tão fácil assim.

 Agora, diante da porta da minha casa, sei que Gracie deve ter feito um almoço bem caprichado e que todos esperando que eu e Yan cheguemos da escola para nos reunirmos. Falando em Yan... Pode-se dizer que ele ficou surpreso em ver meu moreninho e eu juntos na saída da escola e ainda mais surpreso por saber que ele passaria o dia conosco.

 Pelo jeito como eles estão conversando e pela bondade do coração de meu irmão menor, pode-se dizer que Yan o perdoou. Ao menos um dos Solace até então. Os outros não serão tão fáceis de convencer.

 Pego a chave na mochila e destranco a porta. Yan para de tagarelar com Nico e corre para dentro como se sua vida dependesse disso, mas eu sei que ele só vai lavar as mãos o mais rápido que conseguir para almoçar logo. Gracie é bem rígida com essas ideias.


一 Papai já disse pra você não correr! 一 Repreende nossa cozinheira nº1. 一 Will, cadê você?


 Aperto a mão de Nico na minha.


一 Se eles te olharem torto, ignora. 一 Sussurrei a ele.


一 Já esperava que fossem fazer isso, Willie. 一 Replica no mesmo tom de voz. 一 Eu entendo que te fiz mal e que vou precisar me explicar.


一 Desculpa...


一 Tá tudo bem. 一 Acaricia minha mão amorosamente. 一 Pode ser que eu tenha te chamado de covarde para minhas irmãs algumas vezes desde que você se afastou.


 Bem, isso eu também esperava.


一 Will?!? Morreu na porta, é? 一 Essa voz é de Kayla.


 Respiro fundo.


一 Lá vamos nós.


 E entramos. Vou até a cozinha com Nico bem ao meu lado. Minhas mãos estão suadas, mas meu moreninho não solta a que segura. Respiro fundo para regular minha respiração. 


一 Estamos aqui! 一 Aviso, surpreso por minha voz não ter falhado.


  A confusão de Gracie e Kayla pode ser sentida no ar antes mesmo que as duas perguntem:


一 Estamos?!?


 Ó, céus. Deus, me dai forças.


一 Você e mais quem? 一 Kayla pergunta.


一 Eu. 一 Nico responde.


 Silêncio absoluto e nada pleno. Aperto mais a mão de Nico na minha, nervoso com tudo o que essa situação representa e com todos os possíveis desdobramentos disso. Pode dar tão errado... E isso me assusta. A velocidade com que tudo muda. O jogo simplesmente vira. O que você considerava norte agora pode ser o leste e o sul ser o novo norte. O oeste pode ser o novo sul e o leste ser o novo oeste e foda-se você no meio dessa história.

 Seus dois irmãos mais íntimos e que tinham um futuro verdadeiramente brilhante pela frente podem morrer numa inesperada batida de carro e deixar você com um peso no peito pelo resto da vida. Você pode se apaixonar por alguém, conviver com essa pessoa, tentar beijá-la, ser rejeitado e toda a amizade de vocês pode ir pro ralo. Você pode virar representante de toda uma sala de aula que vai contar com você, mesmo você sendo um bosta. Você pode um dia descobrir que vai ser irmão mais velho mais uma vez, assumindo muita responsabilidade pros seus pais poderem trabalhar e te dar uma vida.

 Eu amo meus irmãos, eu amo Nico, eu amo meus pais, eu amei Lee e Michael, eu adoro muitos dos meus colegas e eu amo meus amigos, mas... 

Meus irmãos mais velhos morreram. Eu e Gracie assumimos tudo. Meus pais nem tentam me entender. Meus irmãos mais novos precisam de mim. Meus colegas de sala vivem me azucrinando pra enviar foto da porra do quadro quando eles próprios poderiam ter tirado e pra explicar a porra de um trabalho que eles tavam na aula pra escutar a explicação do professor. E Nico... 

 Nico nunca me procurou. Ele gosta de mim, isso eu vejo. Eu fui cego por tempo demais e me recuso a ser cego agora. Eu entendo e imagino o tanto de coragem que ele deve ter reunido pra ser tão transparente comigo naquela parada, mas... Ele não me procurou. Ele não me mandou mensagem, ele não quis saber de mim, ele não mandou ninguém pra me falar que tava tudo bem entre nós ou algo do tipo.

 Eu passei ANOS lidando com a dor de uma rejeição que nem existiu. Passei ANOS me sentindo mal porque acreditava que ele não me amava. Eu passei ANOS incapaz de fazer qualquer coisa a respeito de como me sentia. Eu passei ANOS lamentando a perda da amizade que tínhamos antes da minha investida mal-sucedida. 

 E Nico deliberadamente permitiu que tudo isso acontecesse.

 Ou talvez não.

 Realmente? Não sei o que pensar sobre tudo isso.

 Percebe como é confuso? Toda a nossa situação já era complicada por si só. Mas foi uma atitude de Nico e tudo virou de cabeça pra baixo e do avesso. Foi nós nos beijarmos naquele ponto de ônibus e tudo ficou de pernas pro ar. Foi apenas ele confessar todas aquelas coisas e eu me vejo absolutamente perdido.

 Meus pensamentos escoam do meu cérebro no mesmo instante em que escuto passos, os passos de Kayla, se aproximando.



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