Rascunho descartado

 


 Tomar aquele veneno foi uma das coisas mais certas que eu já fiz, com toda a certeza. Não me arrependo nem um pouco, por mais que todo o processo de morrer doa como o inferno, mas eu não me importo com nada disso. O fim está mais próximo do que nunca esteve e, como consequência, o alívio que eu tanto almejei também.

 Eu amei Will com toda a minha alma e devoção. Dediquei a ele o mais pleno amor incondicional que qualquer ser humano poderia dedicar a outro. Amá-lo foi uma escolha, assim como me envenenar, e não me arrependo de nada do que me fez traçar esse caminho, levando-me ao final "trágico" que me aguarda. 

 Mas vocês devem estar boiando, sem entender o que traz você, caro leitor, a esta história que já começou sem pé nem cabeça. Irei explicar, obviamente. O que seria de mim a poucas horas da morte se não contasse a você minha trajetória melancólica e desesperadora? Ok, não é pra tanto, mas o que irei narrar é realmente triste e não me responsabilizo pela terapia e nem pelas lágrimas. Dado o recado, vamos ao que interessa.



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 Conheci Will numa loja de música, daquelas antigas que vendem discos de vinil e DVD's. Quase ninguém frequenta esses lugares pra realmente comprar alguma coisa, mas não me sinto especial por gastar meu dinheirinho suado com coisas que meu pai nunca aprovaria se soubesse. Os discos de vinil são coisa minha e da minha avó, que morreu há vários anos, mas eu continuei com o hábito de comprar discos e ouvir de madrugada.

 De qualquer modo, o encontrei num corredor que eu uso muito, de rock-alternativo. Ele olhava as capas e usava o celular para pesquisar pelo artista ou pela música, a escutando por alguns segundos no fone de ouvido. Deixei-o fazer o que achava melhor e me agachei ao seu lado pra pegar os DVD's na parte de baixo da estante.

 Era como se toda a mercadoria da loja estivesse exposta em uma banca de frutas: Estantes pequenas que chegavam a minha cintura, onde os discos e CD's estavam dispostos por gênero musical e separados por artista ou banda. O sistema de organização de Hannah, a atendente mais legal de lá, funcionava. Eu nunca me perdia nas seções e sabia onde cada coisa ficava como se fossem linhas na palma da minha mão pálida.

 Ao olhar para o lado, vi-o me observando. Trocamos um contato visual tenso e inexpressível até que cada um voltou-se para o que deveria estar focando naquele momento. Azuis. Sardas. Cachos dourados como os de um anjo de uma pintura romancista que minha irmã tanto gosta. Seu jeito me lembrou aqueles garotos que eu vira no psicólogo, a ansiedade parece transbordar dele como se quisesse fugir do próprio corpo. Inseguros se reconhecem.

 Peguei o DVD que queria e fui ao caixa. Isaac, o atendente mais chato do mundo, olhou com desinteresse pra mim e escaneou o código de barras atrás do CD com menos interesse ainda do que tinha por minha presença ali pela milionésima vez na vida. Paguei pela minha compra com o dinheiro que Bianca tinha me dado na esperança de me animar e olhei alguns discos antes de verdadeiramente ir embora.

 Havia algo de doloroso na forma como as mãos de Will tremiam quando ele colocou o disco que escolheu no balcão. Isaac fez uma pergunta indelicada sobre a breve tremedeira que seu corpo inteiro teve e, em resposta, ele murmurou que era involuntário. Eu soube naquele momento que não era involuntário porra nenhuma. Não senti pena. O que eu senti foi uma mistura de curiosidade com certeza e uma pitada de... Não sei se há uma palavra que nomeie o que esse sentimento foi, mas era algo como: "Esse garoto parece um problema e eu amo problemas! Então eu amo esse garoto? Eu nem o conheço... Mas vou conhecer!".

 As vezes eu odeio a mim mesmo e minha linha de raciocínio louca. Não importa como, mas eu abracei minha loucura e fui falar com ele depois que ele pagou. Will se apresentou, falou sua idade e algo que gostava. Fiz a mesma coisa, tentando soar o mais enigmático possível para que eu causasse um certo interesse nele por minha pessoa.

 Sentamos na beirada da rua, conversando sobre escola, família e hobbies. Vantagens e desvantagens de cada coisa. O que amamos e o que odiamos. Os dois lados da mesma moeda maldita. E foi nessa conversa de quase seis horas que foi pro ralo todo o meu plano de ser misterioso e atrativo. Eu me expus como um livro aberto. Respondia a tudo o que ele me perguntava com tantos detalhes desnecessários que me achei inconveniente. Eu não seria amigo de mim mesmo se me conhecesse.

 Apesar da breve insegurança que tive por ter falado demais sobre coisas que não precisavam ser faladas, o loiro se mostrou um excelente ouvinte e um faladeiro tão hábil quanto eu no quesito assuntos desconfortavelmente estendidos.

 Dialogamos sobre tudo, basicamente. Sonhos, esperanças, expectativas (nossas e dos outros), pessoa com as quais somos obrigados a conviver e as que convivemos porque escolhemos, metas, gostos e... falamos de traumas também. Ele tem o Mal de Parkinson, toma remédios e tudo o mais que uma pessoa com uma doença terminal faz.

 Foi desconsertante. Mas achei uma maneira de contornar a situação e não chegar nem perto de perguntas invasivas e comentários potencialmente ofensivos. Will tem uma expectativa de vida longa e boa, mas não é uma garantia e isso o assusta. Eu também viveria com medo de fosse ele. A qualquer momento poder morrer é apavorante.

 Ele não quer morrer antes de fazer algo de bom. Sua ideia de "fazer algo bom antes da morte" é diferente da minha. Se eu estivesse em seu lugar, tentaria algo grandioso e inalcançável, como fundar uma instituição, doar meus livros pra caridade, salvar uma vida de um risco eventualmente fatal ou um ato desse tipo. Ele não quer fazer nada disso. Apenas mudar uma vida, ser importante para um pequeno grupo e ser lembrado por quem é e não por atos superficialmente heróicos.

 Não me senti ofendido. Ele falou suas crenças com tanta convicção que foi emocionante e belo de se ouvir. Sua voz me acalentava a alma, fazendo com que eu sentisse que ia despencar de um penhasco se parasse de escutá-lo. Durante nossa longa conversa, percebi uma conexão imediata, como se a gente já se conhecesse a milhões de outras vidas e nem precisássemos estar ali, desabafando daquele jeito para se entender.

 Falei com ele sobre meus medos e minhas inseguranças. Meu passado todo foi exposto como um livro aberto diante dele. Em nenhum momento ele desviou o olhar de mim ou vi em seus olhos que ele parou de ouvir o que eu tinha a dizer. Foi reconfortante. Quando eu começava a falar dessas coisas com meu pai ou com qualquer outro amigo, ele simplesmente parava de escutar e fingia que eu não estava ali.

 Com Will, não me senti dramático ou exagerado por me expressar. Ele também não tentou palpitar ou me dar soluções. Eu só queria reclamar dos meus problemas. Lembro-me de me sentir infinitamente grato por ter alguém que entendia minhas necessidades e não me questionava, impondo sobre mim coisas que eu não precisava ou não queria.

 Tudo chegou ao fim quando Bianca apareceu pra me buscar, pois começara a chover bem fino, mas ia engrossando a medida que o tempo passava. Trocamos números de telefone. Abracei-o, agradecendo por me ouvir, e ele fez o mesmo, apertando-me a cintura como se não quisesse que eu fosse. Garanti a ele que ligaria de madrugada e ele concordou.

 Foi só o carro se afastar que minha irmã começou um monólogo sobre ficar fora por muito mais tempo que o devido, ainda mais conversando com estranhos sobre coisas pessoais. Perguntei como ela sabia sobre o que conversávamos e ela admitiu ter ouvido um pouco. Quis protestar que aquilo era invasão de privacidade, mas ela fingiu que eu não tinha nada a dizer sobre sua péssima conduta como irmã mais velha e continuou dirigindo.

 Brinquei de corrida de gotinhas na janela enquanto Bianca ficava dizendo o quanto fui irresponsável, imaturo, idiota, inconsequente e vários outros adjetivos ruins iniciados com "i". Quase mandei ela tomar no cu e calar a boca, porém, como o anjo que sou, me contive e me limitei a trincar o maxilar. Foi por pouco que chorei de raiva na frente dela. Precisei de muito autocontrole pra que isso não acontecesse.



                                



 Roubei dinheiro do meu pai e fui num mercado vinte e quatro horas. Comprei cigarro, duas garrafas de bebida alcoólica e um isqueiro. Fui para a varanda, coloquei meu disco favorito da Amy Winehouse, bebi vodka direto do gargalo e fumei três cigarros enquanto sentia o vento frio na pele. Chorei, o caminho das lágrimas se tornando dolorosamente glacial no meu rosto.

 Liguei para Will e ele atendeu no primeiro toque. Falei sem parar sobre como eu odiava a minha vida e como odiava minha irmã por me reprimir daquela maneira. Falei sobre como eu odiava as pessoas da minha escola, como eu odiava tudo ao meu redor. Falei por horas sobre como eu só queria um pouco de alívio dessa merda que é a minha vida.

 Ele me consolou, sugeriu que eu mudasse de escola e batesse o pé em relação aos meus pais, exigindo o que era meu de direito: Minha privacidade e liberdade de expressão. Prometi que não me mataria naquela noite e que conversaria com Hades, mi padre, sobre essas coisas e tudo o mais. Quando desligamos já era quatro e meia da manhã. Fumei mais um cigarro.

 Quando o sol começou a surgir no horizonte, enfiei a outra garrafa na mochila, guardei o resto do cigarro e escondi os vestígios do que fiz pela madrugada. Me arrumei pra ir pra escola e cacei algo pra comer na cozinha. Foi quando eu fuçava a geladeira que Bianca surgiu feito o capeta do meu lado. Peguei ingredientes pra montar um sanduíche, ignorando-a.


一 Eu me sentiria melhor se você olhasse pra mim enquanto eu falo.


一 Eu tô bem "foda-se" pra isso, assim como você está bem "foda-se" pra mim enquanto eu falo algo com você.


 Ela fingiu um risinho nervoso.


一 O quê?


一 Não finja que não entendeu o que eu quis dizer. 一 Retruquei, terminando de montar o sanduíche. 一 Eu tô muito cansado de falar, falar e falar, mas não sou ouvido. Aí você exige que eu faça com você o que você não faz comigo? Vai se foder!


 Saí da sala, chateado demais pra continuar olhando nos olhos dela ou até mesmo de respirar o mesmo ar que o dela. Comi meu café da manhã, indo pro ponto de ônibus. Eu estava sentindo muita raiva ao mesmo tempo que um certo peso a menos por ter falado o que eu queria falar.



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