Quando criança, eu me achava meio sozinho. Passava a maior parte do tempo vendo desenhos animados e brincando. Não tinha sequer amigo imaginário, como é comum com crianças da minha idade na época. Eu ficava satisfeito com meus brinquedos e minha própria companhia. Sempre tive muita imaginação e isso me ajudava a passar o tempo quando a TV estava desligada.
Passei o primeiro ano do fundamental lendo gibis e assistindo Pokémon. Mas isso não significa a que eu não tinha um amigo. Ele apenas era de uma escola diferente da que eu estudava. Como morávamos perto um do outro, não nos desgrudávamos nem por um segundo sequer. Naomi brincava que tinham nos colado com super Bonder.
Bom, vou contar como tudo ocorreu.
Eu e meu pai tínhamos acabado de chegar da Itália depois de muito sufoco e nossos vizinhos, os Solace, vieram nos dar as boas-vindas. Apolo e meu pai, Hades, ficaram conversando enquanto levavam móveis e caixas para dentro. Fiquei sentado na calçada, sem saber o que fazer. Eu só tinha três anos. Toda aquela mudança me deixou mais acanhado que o normal.
Até que uma mulher veio em minha direção. Ela tem cachos ruivos e olhos azul-amendoados. Um sorriso perfeito lhe estampava o rosto belo. Não consegui definir sua idade de imediato. Poderia ter vinte cinco ou trinta e sete anos. Ela se ajoelhou na minha frente, pegando minhas mãos nas dela gentilmente. Me olhava com ternura.
一 Você é igualzinho ao seu pai. 一 Ela disse, me analisando. 一 Sou a Naomi. Qual é o seu nome?
A resposta entalou na garganta. Engoli o nó que se formou e me obriguei a responder:
一 Nico.
Um garoto surgiu atrás dela. Cachos dourados cobriam-lhe o couro cabeludo, olhos azuis como o céu de verão e sardas pelo rosto, como estrelas. Ele era bem bonito pra uma criança. Podia ser um daqueles modelos infantis. Ele retribuiu isso meu olhar, curioso a meu respeito, talvez.
Naomi percebeu, abriu um sorriso e nos apresentou um ao outro.
一 Nico, este é meu filho, Will. Will, este é o filho do nosso novo vizinho...
一 Nico. 一 Pronunciou ele. Sorriu. 一 Que nome legal o seu. Você é muito bonito.
Devo ter ficado vermelho de vergonha. A única outra criança que eu conhecia era Bianca. Nunca passei tempo com outra criança além da minha irmã. Desviei os olhos de Will, ficando imediatamente interessado na caixa de Correio. Era branquinha, lisa. Fiquei pensando nos adesivos que eu colaria nela para enfeitar.
Naomi quebrou o silêncio, se sentando ao meu lado e brincando com um colar em seu pescoço. Seus olhos me esquadrinha vamos.
一 Quantos anos você tem, Nico?
Tímido, ergui três dedos. Eu não sabia muito de inglês e estava desconfortável demais para me lembrar da pronúncia dos números. A mãe do loiro abriu outro sorriso. O rosto dela não dói, não?, pensei. Por que ela sorri tanto? Mas eu era e sou esperto o bastante para não fazer essas perguntas diretamente a ela.
一 Vocês dois tem mesma idade. 一 Exclamou.
Fiquei quieto, sem saber o que falar. Se há um ser vivo que sabe manter um silêncio constrangedor é uma criança. Naomi se levantou, pegou a mão do filho e me dirigiu outro sorriso. Não correspondi. Will ainda me olhava com curiosidade ansiosa, como se eu fosse um conjunto de Legos que ele não vê a hora de brincar.
Meu pai e Apolo saíram de dentro da casa. Hades sorria, coisa que ele não faz muito, e m pegou no colo. Eles conversaram sobre algo familiar, parecendo caçoar de alguém. Os Solace se despedem e vão embora, mas o filho do casal me observa. Trocamos olhares até ele sorrir e ir embora, quebrando o contato visual.
✲ ✲ ✲
Precisou de exatos quatro dias para que eu e Will colássemos um no outro. Sempre foi fácil pra mim me readaptar e me acostumar com a presença de outra criança, da mesma idade, não foi diferente. Além do mais, ele gosta de várias coisas que eu gosto e demonstrou um interesse genuíno em ser meu amigo. Era legal ter alguém, que não fosse a minha irmã, que me entende.
Quanto mais eu aprendia inglês, mais conversávamos. Até que eu cheguei no primeiro ano, fluente na língua, e descobri que não estava na mesma escola que o meu único amigo. Foi um ano terrível, mas eu me dei bem. Fiz todo mundo achar que eu era isolado no maior estilo esquisitão e pedi transferência na segunda série.
Lembro da reação da sala quando eu fui chamado pra ir embora. A diretora fez questão de falar que meu amigo estava me esperando. E estava mesmo. Naquele dia dormi na casa de Will e fomos pra escola juntos. Foi estranho porque ele tinha um grupinho que formou no ano anterior e eu tinha que me encaixar nele.
Adivinha? Não deu muito certo. Quando ele não estava por perto, alguns amigos dele me tratavam mal e me excluíam. Não contei as maldades que falavam pra mim porque o loiro gostava da presença deles. Solace foi o único que me tratou bem e foi por causa dele que fiquei por perto por tanto tempo, mas eu me cansei.
Na terceira série, fiz outro amigo, Leo. Conversava muito com ele durante as aulas, mas ele ainda ficava perto da irmã, Nyssa, no recreio. Nesse meio tempo, comecei a sofrer bullying. Os amigos de Will manipulavam tudo de uma forma em que eu parecia instável e os mal-tratava quando só estava tentando me defender deles.
Tudo rolou de tal forma que o loiro ficou do lado deles e brigou comigo por ser grosso. Nem adiantou dizer que eles estavam me caçando porque os malditos se preveniram pra isso. Meus pais foram chamados pela escola e fui taxado de louco. Minha mãe compreendeu que nada daquilo era culpa minha. Ela me apoiou e isso foi tudo o que eu precisei.
Depois disso, passei todo o meu tempo na escola com Leo e dei um gelo em Will. Eu não queria mais saber dele. Ele me trocou. Escolheu o seu lado. E eu cansei de ser um capacho. Com o tempo, aparecem provas de que eu tinha falado a verdade: Uma ou outra piada que eu não revidava, o sumiço repentino das minhas coisas e bilhetes com mensagens ofensivas.
Solace os denunciou por roubarem o meu material, revenderem ele e usarem meu lápis pra me insultar. A caligrafia dos insultos na minha mesa bateu com a dos meninos e levei todos os bilhetes que recebi para a coordenação, para que o diretor lesse-os.
Não deu outra. O sr. D. chamou os pais deles, mostrou as provas de bullying e sugeriu que eles fossem transferidos. Dois pais se negaram e o sr. D. os expulsou pela falta de disciplina, danificação do material alheio e maus tratos com o próximo. Os outros foram encaminhados para outras escolas, onde seriam vigiados para que isso não se repetisse.
Encontrei Will do lado de fora da diretoria, me esperando. Ele não me abraçou ou me tocou, receoso. Fiquei no meu lugar enquanto ele torcia a barra da camisa nas mãos. Olhei-o longamente, tentando adivinhar o que iria dizer. Ele pareceu constrangido sob meu olhar. Depois de vários minutos calado, ele endireitou a postura.
一 Me desculpe. Me desculpe. Eu não imaginava que eles eram tão ruins. Magoaram você, você tentou me avisar. Me perdoa. 一 Pediu.
一 Eles te manipularam.
一 Me colocaram contra você, que conheço há muito mais tempo, e acreditei. Achei que eles estavam certos. 一 O loiro começou a chorar e soluçar. 一 Eu magoei você.
一 Tá tudo bem. 一 Me aproximei dele. 一 Você descobriu a verdade e, graças a você, eles não vão mais me incomodar. Nem a você.
Ele fungou e me abraçou apertado.
一 Nico, me desculpa?
Abracei-o de volta, mas sem a mesma força. Eu estava aliviado por tê-lo como amigo de novo. Feliz porque, dessa vez, ele havia me escolhido. Preferiu delatá-los do que compactuar com o que faziam. Além do mais, minha vida seria muito vazia sem ele.
一 Claro que te desculpo. 一 Sussurrei. 一 Sempre.
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